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Mario Leal Lahorgue¹

Porto Alegre está fazendo 250 anos. Queremos que tipo de cidade nos próximos 250 anos? Qualquer pessoa que se faça esta pergunta necessariamente estará pensando em como a cidade estará no futuro, que coisas podem ser alteradas no funcionamento da urbe e como fazer com que a cidade fique melhor para ser habitada por nossos filhos(as) e netos(as). Ao fazer isso, pensar como seria a Porto Alegre do futuro, esta pessoa está simplesmente, de uma forma singela, exercendo o ofício de planejamento. Isto porque planejamento, nos ensinam os dicionários, é o ato ou efeito de planejar. E planejar significa elaborar um plano ou roteiro de alguma coisa, programar ou ter a intenção de fazer algo, pretender.

Assim, no aniversário de nossa cidade, pensar sobre o futuro é também lembrar da importância de planejar este futuro. Qual a intenção que temos sobre habitar nossa cidade? O que pretendemos com a cidade em que vivemos? O que nos remete à questão: como é o planejamento de nossa cidade? Nós damos importância a ele? Conhecemos como ele é feito? O que sabemos do Plano Diretor?

Qualquer assentamento humano precisa, para dar certo, de algum tipo de planejamento. Pensem em um exemplo simples: a maior parte das cidades do mundo foram assentadas em sítios que permitiam fácil acesso à água; normalmente rios e lagos. Por quê? Porque os humanos necessitam de água para beber, irrigar plantações e fornecer uma via de transporte inicial, antes da construção de algum tipo de estrada. Ou seja: sempre, pensemos nisto ou não, houve planejamento urbano, pois o sítio foi estabelecido a partir de uma intenção prévia. Mesmo quando isto ainda não era uma disciplina acadêmica nem uma lei complicada e cheia de detalhes de mais de 150 páginas como o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) de Porto Alegre.

Muitos não sabem, mas a metrópole gaúcha tem tradição em Planejamento Urbano. Em 1914, Moreira Maciel apresenta um Plano Geral de Melhoramentos. Nele, são propostas obras de abertura e alargamento de vias que serão executadas ao longo do século XX: Avenidas Farrapos, Otávio Rocha e Borges de Medeiros, canalização e retificação do riacho (futura avenida Ipiranga), entre outras propostas. Posteriormente, Planos Diretores serão formalmente aprovados e transformados em lei, como em 1959 (Lei 2046/59); 1979 (Lei 43/1979) e, finalmente, o Plano que é a base que temos hoje (Lei 433/1999).

Este último (Lei 433/1999), o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA), passou por uma ampla revisão em 2010 e, agora em 2022, está novamente em discussão. Isto porque a concepção do PDDUA prevê revisões periódicas de 10 em 10 anos. Portanto, todos nós estamos sendo chamados a pensar: que tipo de cidade gostaríamos de viver?

E isto é interessante (todos nós pensarmos a cidade que queremos), porque tira o véu de algo que é pura aparência: que o Plano Diretor é algo técnico. Não é algo técnico pelo simples raciocínio que fizemos até agora: planejar é elaborar um roteiro com a intenção que temos sobre o futuro, nosso futuro. Logo, planejamento é um ato político por excelência. Toda política é relativa aos negócios públicos, se ocupa de assuntos públicos e é pertinente à cidadania. Inescapavelmente, pensar no Plano Diretor é fazer política, na sua acepção mais geral, como um espaço de negociação/disputa entre atores, segmentos e classes sociais presentes no território urbano. Que fique claro: conversar sobre o futuro da cidade é fazer política (e isto não implica a obrigação de estar ou pensar em termos de partido político).

Claro, para pensar o futuro é necessário saber como estamos agora e, além disso, avaliar sobriamente o funcionamento do atual Plano Diretor. Senão, como reformular algo que desconhecemos?

E o PDDUA começa propondo seus princípios, que são 14 e enunciam, entre outros, a gestão democrática, por meio da participação da população; a promoção da qualidade de vida e do ambiente; o enriquecimento cultural da cidade; o fortalecimento da regulação pública sobre o solo urbano; a defesa, conservação e preservação do meio-ambiente; a distribuição dos benefícios e encargos do processo de desenvolvimento, de modo a inibir a especulação imobiliária, os vazios urbanos e a excessiva concentração urbana; preservação dos sítios, edificações e monumentos de valor histórico. Citei aqui apenas seis, mas o importante é entender que a administração pública, os cidadãos e a iniciativa privada deveriam, pelo menos teoricamente, obedecer aos princípios norteadores em suas ações e intervenções no território urbano.

E, muito importante, no momento em que a revisão do Plano Diretor está na ordem do dia, o parágrafo único do Art. 2º diz literalmente: “na aplicação, na alteração e na interpretação desta Lei Complementar, levar-se-ão em conta seus princípios, estratégias e diretrizes”. Ou seja, na revisão, não se poderá contrariar os princípios aqui expostos. Não é possível modificar o Plano Diretor não prevendo participação popular; não fortalecendo a preservação do meio ambiente ou combatendo a especulação imobiliária. Estes são princípios norteadores!

Portanto, um início de avaliação do atual Plano deve ser: estamos obedecendo os princípios norteadores? A cidade está sendo construída pensando nestes princípios? Cada vez que a administração municipal propõe ou executa obras, os princípios estão sendo obedecidos? E os empresários? As novas edificações, loteamentos e “bairros” cumprem os objetivos de uma cidade mais democrática, inclusiva e que preserve o meio ambiente?

É assim que o PDDUA deve ser discutido: não é necessário saber todos os aspectos técnicos presentes, como dispositivos de controle de edificação, cálculos de Índices de Aproveitamento de terrenos ou densidades brutas, entre outros. Esta não é a parte mais importante do Plano. Na verdade, volto a repetir, tudo isto tem que estar subordinado aos princípios norteadores. É esta a grande disputa: fazer com que os gestores e os atores que cotidianamente constroem e modificam o território da cidade obedeçam aos princípios! E, como a maioria das pessoas desconhece os princípios, não cobra a prefeitura ou os empresários para que ajudem na construção de uma cidade melhor para todas(os).

Além dos princípios, o PDDUA prevê estratégias, que como o nome já diz, é a maneira como os princípios devem estar coordenados para serem aplicados com eficácia. O mesmo raciocínio se aplica aqui: não é necessário conhecer profundamente detalhes técnicos. É só necessário pensar sobre que futuro queremos e avaliar se as estratégias estão sendo cumpridas. Se não estão sendo, por que não? É esta a cobrança que deve ser feita.

As estratégias, presentes no art. 3º, logo em seguida à apresentação dos princípios, são: estruturação urbana; mobilidade urbana; uso do solo privado; qualificação ambiental; promoção econômica; produção da cidade; sistema de planejamento.

Podemos começar, por exemplo, a discussão pela estratégia de Mobilidade Urbana. O art. 6º diz que esta estratégia: “tem como objetivo geral qualificar a circulação e o transporte urbano, proporcionando os deslocamentos na cidade e atendendo às distintas necessidades da população, através de: I – prioridade ao transporte coletivo, aos pedestres e às bicicletas”. Esta parte citada está presente, sem modificações, desde a promulgação do PDDUA em 1999. Vinte e três anos depois, como o poder público tratou esta estratégia? O transporte público melhorou ou piorou desde que estes objetivos foram anunciados? Isto nos faz lembrar que a discussão não pode ficar restrita ao preço da tarifa dos ônibus (não que não seja importante). Na verdade, discutir apenas se a tarifa está cara ou não sequer é uma discussão de planejamento, de pensar estratégias para um futuro melhor na cidade. Dito de outra forma: em verdade, só se discute a tarifa porque a estratégia de mobilidade urbana falhou. Falhou porque a mobilidade piorou nos últimos 22 anos: os engarrafamentos aumentaram, a tarifa subiu acima da inflação no período, os próprios veículos hoje são mais velhos e pouco atrativos, além da espera pelo ônibus ter aumentado enormemente (intervalo entre as corridas). Vejam: a falha na execução da estratégia teve consequências não só para os usuários de ônibus, mas para todos os cidadãos, porque todos enfrentam uma mobilidade em piores condições.

Outro exemplo de balanço sobre o Plano Diretor: a prefeitura, recentemente, alardeou a proposta de um Plano para o centro da cidade, materializada segundo a Lei Complementar nº 930/2021, que institui o Programa de Reabilitação do Centro Histórico de Porto Alegre. Como consta em uma notícia no site da Prefeitura, o prefeito Sebastião Melo comemorou o resultado, afirmando que “a aprovação do plano é fundamental para a retomada do desenvolvimento econômico e social e da convivência urbana do Centro. E esse crescimento não se faz sem atração de mais moradores e investimentos, o que esse novo conjunto de regras vai permitir”. Logo no segundo artigo deste Programa, consta que “constituem objetivos específicos do Programa de Reabilitação do Centro Histórico: I – assegurar a reabilitação dos edifícios que se encontram degradados ou funcionalmente inadequados, contribuindo com a paisagem e com o dinamismo urbano no território”. Curioso. Na Estratégia de Produção da Cidade, art. 23, V, já está escrito no PDDUA: “Programa de Incentivo à recuperação de Prédios Ociosos no Centro Histórico, buscando procedimentos alternativos para a adequação dessas edificações às atuais exigências de habitabilidade, visando ao atendimento da demanda de HIS”. Para que aprovar uma lei que apenas afirma coisas que já constam no Plano Diretor? A resposta está nos detalhes. Vejam, o Programa de Reabilitação tira a referência à Habitação de Interesse Social (HIS). Mas não é só detalhe. Como os princípios e estratégias do PDDUA não são respeitados, o Plano é constantemente modificado em partes e detalhes pretensamente técnicos.

Entre 1999 e 2011, contando com a revisão de 2010, foram feitas 617 modificações no Plano. Artigos e parágrafos tiveram 276 inclusões, 313 alterações e 28 revogações. É negativo que se façam alterações? A princípio, não, pois o próprio Plano foi pensado e instituído para que pudesse ser revisado periodicamente. Mas a pergunta, repito, deve ser: as alterações seguem as diretrizes e princípios elencados? Foram alterados artigos para que as diretrizes fossem cumpridas mais eficientemente? Cada vez que os vereadores aprovam a modificação de um índice de ocupação de algum quarteirão, estão pensando no futuro da cidade ou no lucro imediato do empreendedor?

Ao fragmentar e pulverizar o Plano em centenas de alterações pontuais, o resultado é que o PDDUA é pouquíssimo eficaz para fazer com que a cidade efetivamente avance para um futuro em que todos os habitantes possam usufruir da cidade.

No título deste texto, foi perguntado: para que planejamento, mesmo? A resposta, espero que tenha ficado claro: precisamos pensar o Plano não só como algo técnico, mas que contribua para planejar a cidade que queremos, e que gestores e técnicos sigam estes objetivos (os princípios!) propostos pelos cidadãos.

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¹ Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.