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Mercado Ver-o-Peso, Belém do Pará

A reforma do Ver-o-Peso, principal símbolo do Centro Histórico de Belém, é analisada em Quando o projeto disfarça o plano: concepções de planejamento e suas metamorfoses em Belém (PA), de autoria de Ana Cláudia Duarte Cardoso, Taynara do Vale Gomes, Ana Carolina Campos de Melo e Luna Barros Bibas. O artigo busca dialogar com as concepções de cidade, as intervenções conduzidas pelos grupos políticos locais, as coalizões com o setor privado e a mídia local. Aponta tensões e disjuntivas entre as várias concepções em disputa: de apropriação da paisagem e dos espaços públicos com melhoria da vida cotidiana das pessoas do lugar versus a mercadificação das orlas e dos espaços verdes e a produção do espaço artificial e espetacularizado de deleite do visitante, etc. Demonstra como a esfera política pouco considera, atualmente, o ambiente urbano amazônico em sua complexidade, não abrindo espaço para uma abordagem da modernização de Belém atenta à participação popular, à festa inclusiva e à sociobiodiversidade local.

O artigo Quando o projeto disfarça o plano: concepções de planejamento e suas metamorfoses em Belém (PA) é um dos destaques do Dossiê Especial “Planejamento Urbano e Regional: percursos e desafios”, presente na edição 37 da Revista Cadernos Metrópole.

Abstract

The recent initiative of the municipal government of Belém to renovate the Ver-o-Peso open market, the main symbol of the capital’s historic downtown, is taken, in this paper, as a starting point to discuss conceptions of city and interventions conducted by local political groups based on coalitions with the private sector and the local media. The paper approaches, particularly, the contradictions observed in the attempt to internationalize Belém and the selective nature that strategic planning offers when the political sphere does not consider the complexity of the Amazonian urban environment. The text argues that it would be possible to create mediations for exogenous conceptions of planning in order to propose a philosophical basis for the modernization of Belém that takes into account popular participation, the inclusive party and the local socio-biodiversity.

INTRODUÇÃO

Este artigo adota uma iniciativa da Prefeitura Municipal de Belém de reformar a feira do Ver-o-Peso, principal símbolo do centro histórico de Belém, como mote para discussão de concepções para a cidade, nem sempre explicitadas, mas conduzidas pelos grupos políticos no poder a partir de coalizões com segmentos do setor privado e do suporte da mídia local. Após três meses de sua divulgação, as críticas prevaleceram, e a iniciativa foi suspensa sob alegação do Prefeito de que fantasmas político-ideológicos pairavam sobre os feirantes, em alusão à resistência e à evocação de outras concepções de gestão da cidade.

O processo teve início em 2014, a partir da abertura do edital de licitação do projeto para a feira, que foi efetivamente contratado em setembro do mesmo ano e entregue em abril de 2015. A apresentação à população foi feita no dia do aniversário de 400 anos da cidade, em 12 de janeiro de 2016, sem debate prévio. Diversas audiências foram realizadas por determinação do Ministério Público Estadual, com mobilização de vários setores da sociedade para evidenciar que, mais do que fantasmas, há desinteresse pelo diálogo e pela construção de uma pactuação coletiva a respeito de como tratar as áreas históricas e a orla da cidade.

Procura-se situar esse episódio como uma etapa de um processo mais amplo, no qual o projeto da feira seria apenas a ponta do iceberg, um elemento de um conjunto muito maior de iniciativas que há tempos procura associar a recuperação de monumentos e a criação de novos equipamentos públicos com um processo de abertura das orlas de Belém para o Rio. Isso, de acordo com as diretrizes de concepção de planejamento estratégico as- sumidas, nos países do Norte, de revitalização de áreas portuárias, abandonadas após a fuga de estruturas industriais para os países do Sul, e de sua transformação em espaços de entretenimento.

Em que pese o sucesso econômico de experiências como as de Baltimore, Boston, Londres e Barcelona, é inegável que mesmo nesses contextos houve agravamento de desigualdades e de vulnerabilidade de grupos sociais de menor renda (Hall, 1998). A diferença de formação econômica e social entre essas cidades e Belém é enorme, e assumir que margens de rios (repletas de diversos usos e arranjos sociais) possam ser transformadas em espaços de entretenimento, em orlas espetaculares, demanda inúmeras mediações.

A concentração de monumentos e a excepcionalidade do conjunto urbanístico e arquitetônico da área histórica de Belém (assumida como metrópole desde o período Pombalino), sempre ensejaram uma expectativa de reconhecimento desse acervo como patrimônio da humanidade, alimentando projetos de inserção da cidade nas rotas do turismo nacional e internacional.

Muitas entregas foram feitas pela equipe do governo estadual, durante os primeiros 12 anos no poder sob essa diretriz, com foco no consumo, tais como a Estação das Docas (2000), o Complexo Feliz Lusitânia (2002) e o Parque Mangal das Garças (2005), ao mesmo tempo que a Prefeitura Municipal de Belém, no decorrer de 8 anos de gestão de oposição a essa equipe de governo, desenvolveu um plano estratégico para a orla de Belém com ênfase na criação de novos espaços públicos (concurso público para projeto e reforma de Ver-o-Peso, urbanização da área do Ver-o-Rio, urbanização da orla de Icoaraci).

Apesar da concorrência entre níveis do setor público, a área histórica foi prioritariamente tratada pelo viés da preservação de suas estruturas físicas e da restauração de edifícios históricos, representativos da memória coletiva e de forte apelo simbólico e estético, mas ainda alienados do acúmulo de práticas sociais e culturais do lugar e dos processos globais a que as cidades estão sujeitas e, particularmente, do modo como Belém assimilou as transformações ocorridas na Amazônia desde os anos 1960. Em que pese a motivação econômica de alavancar o turismo, na escala local, o debate sobre possíveis antídotos para processos de gentrificação, alienação social e museificação foi deixado em segundo plano.

Após um intervalo de 4 anos, em 2011 a mesma equipe retorna ao Governo Estadual, dessa vez com total alinhamento político com a equipe da Prefeitura de Belém a partir de 2013, o que favoreceu a retomada da antiga proposta de projetar Belém no cenário internacional, agora não mais baseada na revitalização de estruturas históricas, mas no potencial de biodiversidade, sustentabilidade e turismo, este último fortemente apoiado na cultura, gastronomia, música e saberes populares e ancorado em Belém, demonstrando inspiração no ideário da sociedade criativa, difundido nas últimas décadas, por economistas norte-americanos e canadenses (Florida, 2010 e Glaser, 2011).

Uma mistura dessas duas “escolas” fundamenta as propostas para a capital – planejamento estratégico catalão e sociedades criativas –, viabilizadas pela euforia do alinhamento político dos dois níveis da administração pública e pela simpatia de setores privados pelos temas, reeditou os antigos projetos de intervenção tendo em vista o aumento do volume de turistas internacionais, acentuando, contudo, contradições entre as estratégias de invisibilizar segmentos da população que vivem ou trabalham nas áreas-alvo da espetacularização da cidade e da necessidade de explorar cultura e tradição e mesmo marcas e símbolos, construídos através de séculos de trabalho pelas pessoas que agora representam o ambiente hostil e selvagem, a decadência urbana, o perigo e a desordem, identificados e ainda não controlados, com forte risco de “jogar a água com a criança junto”.

Acesse o artigo completo no site da Revista Cadernos Metrópole.