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Samuel Thomas Jaenisch*
Tainá Alvarenga**

O início de 2023 ficou marcado pela volta da coalizão de centro-esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo federal, renovando as expectativas em torno da retomada de uma agenda pública com maior centralidade para as políticas sociais, em especial aquelas voltadas para a redução da pobreza e a diminuição das desigualdades. Os primeiros meses de governo deram várias sinalizações positivas nesse sentido, com uma reestruturação ministerial que voltou a dar protagonismo a temas fundamentais nesse campo, como a questão indígena, os direitos humanos, a igualdade racial e de gênero, a agricultura familiar, além da previsão de ações e programas voltados para a questão urbana e metropolitana.

Uma medida fundamental nesse sentido foi a recriação do Ministério das Cidades, extinto de forma arbitrária pelo governo anterior, cuja atuação prometeu incorporar em seu escopo de ações temas tradicionais do campo (desenvolvimento urbano, habitação, saneamento, mobilidade), integrando também uma nova secretaria voltada para ações direcionadas aos territórios populares. Outra medida que ganhou destaque foi o lançamento da nova versão do Programa Minha Casa, Minha Vida, ocorrida já no segundo mês de governo, em cerimônia pública conduzida pessoalmente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na cidade de Santo Amaro da Bahia. Essa medida já vinha sendo amplamente anunciada durante a campanha, comemorada de forma legítima por diversos setores da opinião pública e da sociedade civil organizada, mas levantando ressalvas em relação aos seus precedentes, considerando a forma como a primeira versão do programa foi conduzida entre 2009 e 2020.

Foto: Samuel Thomas Jaenisch.

A importância de manter um programa nacional de provisão de habitação em massa é indiscutível, considerando o quadro crítico de demandas por moradia existente no país. Mas a questão a ser colocada é: será que o Programa Minha Casa, Minha Vida tem condições de ser uma solução efetiva para isso? Recentemente, vários posicionamentos críticos em relação a esse debate vêm sendo amplamente divulgados e discutidos nas redes sociais, contando com a participação de movimentos sociais, setores da universidade, órgãos de classe, profissionais e ativistas. A ideia deste texto é contribuir com esse debate, recuperando alguns pontos que foram problemáticos na execução do programa no passado e seguem como um passivo não resolvido, principalmente no que tange aos empreendimentos voltados para a Faixa 1, àquela direcionada para a população mais pobre e em maior situação de vulnerabilidade social.

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Por ser um programa bastante estudado e discutido desde seu primeiro lançamento, no ano de 2009, diversas críticas já foram feitas, apontando um amplo leque de questões que podem facilmente ser recuperadas na bibliografia do campo dos estudos urbanos. Não iremos fazer essa retomada neste momento. O objetivo aqui é recuperar elementos que dizem respeito, principalmente, aos impactos do programa sobre as condições de vida das pessoas que acessaram as casas e apartamentos construídos, ressaltando as dificuldades que vêm sendo enfrentadas para permanecer nos novos locais de moradia devido à sobreposição de camadas de precarização e violência. A discussão terá como referência os resultados de pesquisas empíricas que vêm sendo realizadas na cidade do Rio de Janeiro, no âmbito do Grupo Habitação e Cidade do Observatório das Metrópoles.

Violência, precarização e expulsão 

Em termos dos padrões de inserção urbana, as pesquisas já realizadas apontam que o programa operou na cidade do Rio de Janeiro como um vetor importante de precarização das condições de vida da população mais pobre. Com a localização dos empreendimentos da Faixa 1 ocorrendo, em sua grande maioria, em frentes de expansão urbana no limite da zona oeste da cidade, muitas vezes em áreas parcamente conectadas às redes de transporte público e com atendimento restrito de serviços públicos essenciais. Essa concentração pode ser visualizada no mapa abaixo. Situação que foi agravada pela violência que marcou os processos de remoção envolvidos nos reassentamentos, nos quais parte da população direcionada para os empreendimentos do programa foi deslocada de forma arbitrária e autoritária pelo poder municipal, para locais distantes a dezenas e dezenas de quilômetros de seus locais originais de moradia. Vale lembrar que a cidade passou por um ciclo de grandes intervenções urbanas ligados à preparação da cidade para os grandes eventos esportivos realizados na década passada, o que intensificou esse processo.

Distribuição das unidades habitacionais financiadas pelo Programa Minha Casa Minha Vida / Faixa 1 na cidade do Rio de Janeiro. Fonte: Grupo Habitação e Cidade (Observatório das Metrópoles).

Outro ponto crítico que vem se tornando cada vez mais urgente, é a ocupação crescente desses empreendimentos por grupos armados, sobretudo, por grupos milicianos, conforme já amplamente noticiado pela imprensa nos últimos anos. Isso acabou se configurando como uma consequência direta da sua implantação em frentes de expansão urbana e em áreas precárias em termos de infraestrutura e serviços. Localizações que favorecem a capilaridade desses grupos, que atuam exercendo o controle do território e, consequentemente, da vida dos moradores, que passam a ter seu cotidiano submetido aos seus mandos e desmandos.

Em estudo empírico que vem sendo conduzido em empreendimentos do programa localizados na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, foi possível acompanhar a chegada dos primeiros moradores para lá deslocados, após terem sido removidos de diversas áreas da cidade. No processo, observou-se que a milícia atuante no local foi, inicialmente, realizando o processo de imposição de serviços de administração condominial, venda de botijões de gás e de cestas básicas, bem como o aluguel de espaços comerciais e cobranças de taxas aos comerciantes. Além disso, muito embora as famílias falassem pouco sobre esse cotidiano, devido aos riscos que poderiam estar sujeitas, muitos foram os relatos de moradores que nem chegaram a ocupar os apartamentos que tinham recebido do programa. A expulsão dos moradores é uma situação recorrente nos empreendimentos visitados, ligada ao uso da força ou de coerção por parte desses grupos, ao identificarem alguma ligação dos moradores com outros grupos atuantes em seu local anterior de moradia, ou mesmo para oferecer e vender as unidades para terceiros.

Esse fluxo de ilegalismos, partindo do conceito empregado por Vera Telles¹, presente nos territórios populares da cidade do Rio de Janeiro e, em especial, dentro dos empreendimentos construídos pelo programa, pode ser entendido como mais uma forma de opressão sobre esses moradores, subjugando seu cotidiano a um amplo repertório de violências. Vale destacar o fato de que esses grupos armados operam dentro do aparato estatal, borrando as fronteiras entre o legal e o ilegal, criando uma zona de indistinção que incide sobre as relações mantidas no território, estabelecendo mecanismos de controle que fazem uso da institucionalidade para impor seus desmandos entre os moradores, sobrepondo múltiplas camadas de violência. Segundo o Mapa do Grupos Armados, produzido pelo Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF), 56,2% da população carioca vive sobre o controle de grupos milicianos, em especial na zona oeste da cidade, região onde foram construídos a maioria dos empreendimentos da Faixa 1 do programa.

Um ponto que merece ser ressaltado é justamente a sobreposição no território dessas duas lógicas – a de atuação dos grupos milicianos e da implantação dos empreendimentos da Faixa 1 do programa – fato que foi (e vem sendo) largamente desconsiderado pelas instâncias responsáveis pela formulação e implementação do programa nas suas fases anteriores. Vale ressaltar que o tema da “segurança pública” consta apenas de forma pontual na nova formulação do programa lançado em fevereiro, indicando que esse tema segue sem grande destaque.

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Um outro ponto que está diretamente relacionado a isso é a situação dos casos de distratos contratuais. É sabido que na cidade do Rio de Janeiro, devido a esse controle exercido pelos grupos armados sobre os empreendimentos do programa, são inúmeros os relatos de moradores expulsos por diversos motivos. Cabe destacar que o lançamento do programa ocorreu em 2009, mas somente em 2017 foi editada uma portaria pelo Ministério das Cidades (trata-se da portaria nº 488, de 18 de julho de 2017), prevendo o distrato e o encaminhamento dos moradores para nova moradias nos casos de invasão, expulsão ou ameaça. Frente a isso, cabe questionar como estão e onde estão os moradores que foram expulsos ou tiveram que abandonar as suas casas antes da edição da portaria, quando não tinham nenhum respaldo para encaminhar denúncias ou solicitar ações para reverter esse tipo de situação. Durante pesquisa de campo que vem sendo realizada em uma favela localizada na zona norte da cidade, tomamos conhecimento de relatos de ex-moradores de empreendimentos do programa que foram expulsos e não puderam realizar nenhum tipo de encaminhamento, tanto nos órgãos responsáveis (como a Caixa Econômica Federal), quanto nas instâncias de acesso à justiça.

Outro ponto é o impacto da forma condomínio fechado, amplamente adotada pelo programa, enquanto um agravante desse tipo de situação. Além de segregar os moradores de seu entorno e fragmentar o tecido urbano, ela acabou incidindo sobre a renda das famílias, oneradas por todas as taxas decorrentes da manutenção condominial e do próprio processo de formalização. Situação que inviabilizou a permanência de muitas das famílias atendidas.

A dificuldade de permanência se destacou como um dos pontos mais críticos na implementação do programa nas fases anteriores. Diversas pesquisas, não só no Rio de Janeiro, indicam que o abandono das moradias é uma questão de suma importância a ser enfrentada pelos órgãos competentes, inclusive sendo um indicador de uma das principais limitações do programa. Há as famílias expulsas por ação criminosa, há aquelas que deixam suas casas por não conseguirem arcar com os custos, além de muitas que saem por não reconhecerem a legitimidade do processo de reassentamento à que foram submetidas. Todas elas acabam ficando desassistidas e, muitas vezes, inviabilizadas de integrar novamente qualquer política habitacional, retomando para uma condição de moradia bastante precária.

Foto: Samuel Thomas Jaenisch.

Na pesquisa de campo realizada, foi possível identificar algumas famílias que foram removidas de uma ocupação na zona norte da cidade para empreendimentos construídos na zona oeste no ano de 2012, mas que acabaram retornando posteriormente para uma localidade vizinha ao local de origem onde tinha ocorrido a remoção. Elas relataram que os motivos para esse retorno se remeteram à falta de oportunidades de trabalho, à falta de segurança, além da distância de suas redes de sociabilidade e solidariedade.

Ao optar pelo retorno à localidade de origem, uma das moradoras, mulher negra de 45 anos, define que apesar de retornar a morar em uma espécie de “ocupação”, atualmente encontra-se perto de familiares e de possíveis oportunidades de trabalho. Ela relatou ter vendido o apartamento no empreendimento do programa na zona oeste por menos de R$20.000,00, e que não se arrepende, pois não tinha conseguido se adaptar e tinha muitos custos, a exemplo das taxas condominiais e das taxas cobradas pelos grupos milicianos. Perguntada se já tinha procurado a Caixa Econômica Federal para tratar da sua situação, ela afirma que não teve a oportunidade e que a venda de sua casa foi formalizada apenas através de um contrato “de gaveta”. Outro caso emblemático é de outra moradora, mulher, também negra, de 48 anos, que deixou alugado o apartamento que tinha no mesmo empreendimento do programa, retornando para uma favela na zona norte da cidade, tendo perdido, posteriormente, sua nova casa devido a um incêndio, estando atualmente recebendo aluguel social. O motivo de seu retorno para a favela de origem, após ter sido contemplada com uma moradia do programa, se deve ao fato dos filhos, na época adolescentes, terem recebido ameaças dos grupos de milicianos atuantes no local. Dessa forma, ela entende que “morar em área de tráfico seria mais seguro, pois seus filhos e ela são conhecidos no local e não há desrespeito”.

Nesses dois casos, destaca-se o fato de ambas as moradoras serem mulheres. Isso reforça, também, a importância de aprofundar o debate sobre a titulação feminina no programa que, conforme apontado pela pesquisa de Poliana Monteiro, em sua dissertação de mestrado², não operou de forma satisfatória na diminuição das desigualdades de gênero. A efetividade das políticas de habitação social nesse campo depende da articulação entre ações que reforcem o protagonismo feminino na titulação das moradias e melhorias efetivas na oferta de serviços públicos articuladas com outras políticas setoriais. Ao observarmos que os empreendimentos da Faixa 1 do programa foram construídos, em sua grande maioria, em frentes de expansão urbana, sem articulação com ações de trabalho e renda, mobilidade urbana, segurança pública, ou mesmo com a construção de equipamentos para atender as demandas das crianças na primeira infância, como as creches e as escolas de ensino infantil, fica evidente que as vulnerabilidades deste grupo seguirão se aprofundando. A atuação dos grupos armados nesses territórios também operou como um agravante dessa condição. A nova formulação do programa prevê, novamente, que os contratos sejam feitos preferencialmente no nome das mulheres. No entanto, para que possamos entender isso como um avanço efetivo no âmbito da autonomia e dos direitos, é necessária sua integração com outras ações complementares.

Caminhos para o futuro

Inúmeras discussões que vêm sendo realizadas no campo dos estudos urbanos desde o lançamento do programa, em 2009, convergem para o reconhecimento de que o acesso a uma moradia digna não pode se resumir ao acesso a uma unidade habitacional. Esse talvez tenha sido um dos principais problemas do Programa Minha Casa, Minha Vida em sua primeira versão, que manteve sua implementação muito centrada no cumprimento de metas quantitativas de produção, com claro interesse em privilegiar demandas que estavam colocadas no plano das políticas de desenvolvimento econômico em curso. Essa contradição entre a “função social” e o “papel econômico” do programa está no cerne de muitos dos pontos críticos apontados. Uma diminuição efetiva do quadro das desigualdades habitacionais presente na cidade do Rio de Janeiro (e em tantas outras grandes cidades do país), só se dará articulando a oferta de novas moradias com outras políticas complementares.

As pesquisas que vêm sendo realizadas no âmbito do Grupo Habitação e Cidade, e que embasaram as considerações apresentadas neste texto, indicam que é urgente considerar na nova formulação do programa (e na forma como ele for executado), as várias camadas de precarização e violência que se agravaram nos territórios populares nos últimos anos. Há que investir em ações para conter a degradação física dos condomínios já construídos, para garantir a permanência dos moradores beneficiados pela política, e oferecer condições de sobrevivência econômica, além de reduzir as situações de conflito promovidas pelos grupos armados. E um olhar interseccional se mostra fundamental para dar conta da complexidade presente nesses territórios, onde se reificam (e em muitos casos se intensificam) as opressões e violências decorrentes das desigualdades de gênero e raça que marcam a formação da sociedade brasileira. Os espaços populares de moradia, considerando nesse escopo os empreendimentos construídos pelo Programa Minha Casa, Minha Vida, exigem um olhar atento por parte do poder público, articulando ações multisetoriais, superando qualquer modelo de política habitacional, pensando a partir dos efeitos que ela possa gerar sobre os indicadores macroeconômicos. Talvez seja esse o maior desafio que esteja colocado à retomada do programa pelo atual governo.

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* Pesquisador do Grupo Habitação e Cidade (IPPUR/UFRJ), vinculado ao INCT Observatório das Metrópoles. Bolsista Faperj PDR-10.

** Pesquisadora do Grupo Habitação e Cidade (IPPUR/UFRJ), vinculado ao INCT Observatório das Metrópoles. Bolsista Faperj TCT.

¹ Apesar do livro “A cidade nas fronteiras do legal e ilegal” tratar das relações sociais e territoriais da cidade de São Paulo, o conceito serve para dar luz às dimensões vivenciadas nos territórios do Rio de Janeiro, sobretudo em relação às milícias.

² Trata-se da dissertação: “O gênero da habitação: A diretriz de titulação feminina no marco do Programa Minha Casa Minha Vida”, defendida junto ao IPPUR/UFRJ em 2015. Disponível em: http://objdig.ufrj.br/42/teses/869346.pdf.