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Apresentamos o novo dossiê da Revista Cadernos Metrópole, com o tema “As metrópoles sob governança neoliberal/ultraliberal”, cujo os artigos abordam as dinâmicas e os impactos do neoliberalismo como expressão aplicada de pressupostos e interesses vinculados ao “mercado”, isto é, ao capital e às elites proprietárias e gestoras.

Organizado por Francisco Fonseca (FGV/Eaesp e PUC-SP), Humberto Meza (IPPUR/UFRJ) e Nelson Rojas de Carvalho (PPGCS/UFRRJ), pesquisadores do INCT Observatório das Metrópoles, o dossiê traz 16 textos que exemplificam a aplicação neoliberal em casos concretos e apontam para municípios – no Brasil e no exterior – que, ao promoverem a agenda neoliberal sob a forma de gestão pública e de políticas públicas, impactam diversas áreas.

Segundo os organizadores, as análises têm como premissa verificável a existência de dimensões internacionais do capital quanto aos interesses aplicados no Brasil à luz dos fundamentos neoliberais/ultraliberais. O conjunto de artigos respondem a três eixos centrais de pesquisa:

  1. A gramática ultraliberal que anula o papel regulador do Estado para torná-lo garantia da ação direta dos agentes privados na gestão das cidades, com claras alterações nas políticas urbanas e no cotidiano dos indivíduos;
  2. A permanência do velho sistema extrativista minerário e das políticas hídricas e de saneamento, cada vez mais articulados à financeirização e aos circuitos “modernos” internacionais;
  3. A produção habitacional (moradia) impactada por políticas urbanas formatadas pelos interesses do mercado imobiliário com consequências para financeirização da moradia e uma gradativa deterioração da possessão em grande escala.

Quanto ao primeiro eixo, o artigo de Isadora de Andrade Guerreiro, Raquel Rolnik e Adriana Marín-Toro, “Gestão neoliberal da precariedade: o aluguel residencial como nova fronteira de financeirização da moradia”, analisa a dinâmica recente pela qual a financeirização da moradia tem se disseminado na América Latina, notadamente no Peru, Colômbia, México e Brasil, através do mecanismo do aluguel, onde a moradia se transmuta de propriedade em serviço. A pesquisa investiga como a conexão entre o aluguel residencial e as finanças colocou em andamento uma nova frente de financeirização da moradia e de despossessões em escala global. Sob a lógica da financeirização, atores privados corporativos passaram a gerir o mercado do aluguel em grande escala, chegando-se no continente latino-americano (nas moradias populares) com articulação e gestão própria dos ilegalismos.

No artigo seguinte, “Mapeando grandes projetos urbanos: levantamento de operações urbanas nos municípios brasileiros”, Marina Toneli Siqueira e Carolina Silva e Lima Schleder destrincham a noção de empresariamento urbano (Nobre, 2019), evidenciado no espraiamento e na consolidação das Grandes Operações Urbanas Consorciadas (Gouc) que usam Parcerias Público-Privadas (PPPs) para se concretizarem. A partir de um diagnóstico acurado de toda as Goucs existentes no Brasil e usando os dados populacionais do IBGE, as autoras constatam um padrão diverso e variado das capacidades administrativas nos municípios brasileiros (em termos de regulações, leis especiais, presença ou não das Goucs nos Planos Diretores, etc.), que dificulta a obtenção dos objetivos sociais previstos no Estatuto da Cidade.

O pesquisador Luis Miguel Gomes Cornejo Urriola, no seu texto “Urbanização neoliberal e megaeventos em Lima e Callao”, constrói, a partir da realização de megaeventos no Peru (especialmente os XVIII Juegos Deportivos Panamericanos Lima 2019), um discurso crítico sobre as novas formas de governança urbana neoliberal que aciona dispositivos culturais, como a naturalização da austeridade do setor público, a concorrência e o livre-comércio (Peck, 2012). Nesse processo, o Estado exerce papel indispensável na centralização e concentração do capital, a partir da criação e da expansão das já velhas conhecidas PPPs.

Na sequência, dois artigos mostram como o empresariamento urbano altera o acesso democrático às políticas urbanas e, consequentemente, à experimentação da cidade por todos. Em “Adensamento e verticalização nos municípios centrais da Região Metropolitana da Baixada Santista”, Lenimar Gonçalves Rios, Mônica Antonia Viana e Alexandre Lukas Morrone comprovam que processos de expansão residencial e as transformações morfológicas de longo período, guiados pelos interesses do mercado imobiliário, reforçaram a monofuncionalidade do espaço e a dependência do automóvel nos deslocamentos entre os municípios da região metropolitana estudada.

Já a pesquisa “Neoliberalismo e o esvaziamento do Estado no transporte público de Araraquara–SP” de Tatiane Borchers e Victor Garcia Figueirôa-Ferreira, analisa a trajetória da política de mobilidade por meio do ague, declínio e extinção da Companhia pública Troleibus Araraquara (CTA), que acabou sendo sucateada após a troca da matriz energética para veículos a diesel, permitindo que a iniciativa privada pudesse se inserir na dinâmica de mobilidade urbana. Além de ver quais dispositivos foram acionados nessa transformação, os autores analisam o impacto dela no acesso à mobilidade local atualmente.

Sobre o impacto da ultraliberalização no cotidiano dos indivíduos, o artigo “‘Vestindo a camisa da empresa’”: neoliberalismo e a subjetividade dos trabalhadores shoppers”, dos pesquisadores Brauner Geraldo Cruz Junior, Claudio Luis de Camargo Penteado e Paulo Roberto Elias de Souza, analisa a uberização do mundo do trabalho a partir da vivência de dois trabalhadores de aplicativos e de suas experiências de insegurança, fragilidade e dificuldade na construção de uma identidade profissional, inerente à emergência da razão ultraliberal.

O eixo das transformações urbanas no cenário contemporâneo, marcado pela razão ultraliberal, encerra-se com o texto de Ana Tagliari e Wilson Florio, “Passarelas urbanas projetadas por João Batista Vilanova Artigas”. Analisando os documentos disponíveis no acervo da Biblioteca da FAU-USP, os autores estudam o projeto de passarelas urbanas na obra de João Batista Vilanovas Artigas na década de 1970, para detectar como dimensões de espaço, movimento, conexão, circulação, cidade foram articulados na formatação da arquitetura contemporânea. O estudo encontra valor nas passarelas de Artigas, não apenas no objeto projetado e construído, mas também em seu pensamento teórico sobre as dimensões supracitadas.

Ocupação de um prédio da empresa Oi, no Rio de Janeiro. Foto: Tânia Rego (Agência Brasil).

No segundo eixo da análise do dossiê, destaca-se o artigo “Governança neoliberal em territórios minerários: o investimento social privado na RMBH”, de autoria de Junia Maria Ferrari de Lima, Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki. Trata-se de importante análise dos chamados “investimentos sociais privados”, que se dão pela via da “sociedade civil” (em seu sentido liberal) e são crescentemente financiados por associações empresariais, notadamente do setor minerário. A partir da abordagem gramsciana (hegemonia, aparelhos privados de hegemonia, disputa pelo senso comum, etc.), o artigo reflete sobre o papel ocupado por esse setor arcaico da economia, mas muito “moderno” em construir imagens e narrativas. Com isso, embora produzam crimes socioambientais que mancham a história de Minas Gerais, respondem a eles de forma ideológica, em busca da hegemonia da mineração como “produtora de riquezas”, blindando-se, assim, de punições.

Já o artigo “Doce fel da minero-dependência nas cidades mineiras: Brumadinho e Itabira em perspectiva”, de Frederico Dornellas Martins Quintão, Armindo dos Santos de Sousa Teodósio e André Luis Freitas Dias, traz ao primeiro plano a resistência dos grupos atingidos: práticas, valores, perspectivas, formas organizativas, etc. Em termos teóricos, o artigo ancora-se nas importantes perspectivas decolonialistas e pós-desenvolvimentistas, valorizando saberes, práticas e dimensões econômicas não atreladas ao extrativismo. Contribui, em termos metodológicos, pela via da participação nos movimentos de resistência das duas cidades em foco. Mais do que observação participante, trata-se de perspectiva de intervenção, que tem como contraparte a reflexão acadêmica.

Esse eixo analítico contém também dois artigos referentes aos recursos hidrológicos e ao saneamento. O primeiro, intitulado “Urbanização e gestão de riscos hidrológicos em São Paulo”, de Afonso Celso Vanoni de Castro e Angélica Tanus Benatti Alvim, analisa, em perspectiva histórica, o processo de urbanização massiva na cidade de São Paulo à custa de intensa prática de soterrar os rios e ocupar os vales fluviais. Os efeitos são sabidos e marcados na própria experiência brasileira urbana: deslizamentos, alagamentos, enchentes e toda forma de “desastres” promovidos pela ação especulativa do capital vis-à-vis o enfraquecimento do Estado e das políticas públicas, amplificado por políticas neoliberais desreguladoras e desregulamentadoras. Mais ainda, a fragilidade dos órgãos de defesa civil e de monitoramento de chuvas é apontada como parte da fragilização do próprio Estado.

Também o artigo “Potencialidades e contradições do FMSAI no município de São Paulo – 2011–2018”, de Lucas Daniel Ferreira, analisa o Fundo Municipal de Saneamento Ambiental e Infraestrutura em duas dimensões: o que se propôs a realizar (universalização do saneamento e acesso à água) e o que de fato se faz tendo em vista a execução orçamentária. Trata-se de estratégica metodológica bastante sólida ao considerar essas duas perspectivas. O texto aponta que as destinações orçamentárias não privilegiaram as favelas e a região das represas (cada vez mais povoados por grupos expulsos do centro expandido), por exemplo, e sim outras políticas urbanas, tais como drenagem, segundo a lógica da disputa por recursos do fundo, isto é, o “conflito distributivo”, que pendeu fortemente – segundo conclui – para as regiões (territórios) da cidade habitadas pelas classes médias e superiores.

Finalizando esse eixo, o artigo “Economia Criativa: uma estratégia de desenvolvimento urbano em Belo Horizonte”, de Renata de Leorne Salles, reflete sobre um tema bastante contemporâneo e alvo de apropriações distintas: a chamada Economia Criativa. Segundo os organizadores do dossiê, o texto foi incorporado a esse eixo em razão de representar proposição – embora controversa – acerca de novas formas de economia e ocupação do solo. Dialoga de forma reversa com o arcaísmo do setor extrativista, ao mesmo tempo que pode incorporar elementos vinculados ao uso da água como recurso vital. Portanto, trata-se de análise em perspectiva ampla sobre o velho e o novo no Brasil contemporâneo.

No que se refere ao terceiro eixo de análise, que articula a inflexão neoliberal a novas formas de produção e oferta da moradia, situa-se o artigo de Mario Leal Lahorgue, Paulo Roberto Rodrigues Soares e Heleniza Ávila Campos, “Porto Alegre como máquina de crescimento: a produção habitacional recente na metrópole”. Nele, os autores analisam a dinâmica da produção imobiliária na última década na Região Metropolitana de Porto Alegre, caracterizada por um forte volume de investimentos, desassociado tanto da dinâmica dos ciclos econômicos como das taxas de crescimento populacional. Capitaneado por um número concentrado de empresas, que se localizam no núcleo do complexo urbano, imobiliário e financeiro local, o expressivo volume de investimentos imobiliários verificado em Porto Alegre representa ao mesmo tempo causa e efeito de uma ampla reestruturação produtiva, com a deslocalização da indústria do núcleo metropolitano, o qual que se torna objeto da captura do setor secundário da acumulação.

Thêmis Amorim Aragão, no artigo “A regulação do mercado imobiliário e política habitacional no Rio de Janeiro”, analisa as raízes do déficit imobiliário no Rio de Janeiro e identifica, a partir da desagregação dos componentes do déficit, que, no caso do Rio de Janeiro, o ônus com a aluguel foi a variável central subjacente à falta de acesso a moradias. O artigo problematiza a visão segundo a qual a intervenção estatal deve centrar-se tão somente na produção pública da moradia; sugere um leque de ações estratégicas por parte do estado que se afigurariam como mais relevantes do que os tradicionais programas de provisão de habitação de interesse social.

Marina Ferrari de Barros, Flavia da Fonseca Feitosa e Jeroen Johannes Klink, no artigo “Produção do espaço residencial em Santos/SP: parâmetros urbanísticos e a ‘ordem urbana’”, com base na análise dos coeficientes de aproveitamento e leis que regularam a ocupação do solo no município de Santos ao longo de cinco décadas (1968/2018), buscam testar a hipótese segundo a qual o estado, por meio da sua ação reguladora, promove uma ordem urbana que privilegia a produção residencial de alta renda. O artigo comprova a tese e identifica um duplo movimento de generalização e focalização, pelo qual, graças à ação reguladora do estado, configura-se uma ordem urbana direcionada à maximização dos lucros derivados da produção de novas localizações e ao direcionamento da produção do espaço urbano residencial pelas camadas de alta renda.

No artigo “A dimensão internacional nas transformações urbanas no bairro Floresta em Porto Alegre”, Vanessa Marx, Gabriela Luiz Scapini e Gabrielle Araújo analisam, a partir da perspectiva da glocalização, as transformações urbanas no bairro Floresta, localizado na região do 4º Distrito de Porto Alegre, decorrentes do processo de neoliberalização e de financeirização. O artigo, por meio da análise do caso empírico do bairro de Floresta, desenvolve proposta de metodologia capaz de capturar a dimensão multiescalar da incidência dos fluxos de capital sobre o território, bem como a dinâmica de formação de alianças, coalizões e parcerias público-privadas.

Revista Cadernos Metrópole surgiu em 1999 como um dos principais produtos do Observatório das Metrópoles e tem como principal objetivo difundir os resultados da análise comparativa entre as metrópoles brasileiras. A revista é produzida em parceria com a EDUC (Editora da PUC-SP). Conheça a história do nosso periódico nesse post da Scielo (clique aqui).