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Luciano Fedozzi¹

A criação do SUS é uma das maiores conquistas da democracia brasileira. Não há país no mundo com mais de 100 milhões de habitantes que tenha um sistema de saúde pública igual ao SUS. Ele reflete a inspiração dos valores socialistas de saúde pública como um bem essencial à dignidade da pessoa humana, um direito humano fundamental e por isso um dever do Estado. O SUS começou a ser inspirado ainda na década de 1980 (VIII Conferência Nacional da Saúde, em 1986), no final da ditadura, e foi criado com ampla participação da sociedade durante os debates e as decisões da Constituição Federal aprovada em 1988, que redemocratizou o Brasil e abriu portas inéditas para os direitos sociais da cidadania.

A repartição solidária dos três entes governamentais (União, Estados e Municípios), os recursos orçamentários obrigatórios vinculados constitucionalmente à saúde, e a participação cidadã em conselhos de controle social nos três níveis de governo são partes inalienáveis do sistema criado. Apesar desse avanço institucional da saúde como direito universal da cidadania, o sistema sempre se ressentiu de subfinanciamento para dar conta da prestação dos serviços, sejam simples ou complexos. Mas esse problema foi fortemente agravado com o desfinanciamento que ocorreu a partir do golpe parlamentar de 2016 e a adoção da política de austeridade neoliberal, pelo governo Michel Temer, com a emenda constitucional nº 95, que instituiu o Teto dos Gastos (“Ponte para o futuro”). A emenda acabou com o investimento obrigatório de 15% da receita da União em saúde até 2036 e instituiu o limite dos gastos no patamar de 2017 e variação da inflação, independentemente de possíveis aumentos da arrecadação. O resultado, segundo os cálculos do Conselho Nacional da Saúde, foi a redução de R$ 22,5 bilhões dos investimentos federais no SUS, entre 2018 e 2020, sem considerar os recursos extraordinários aportados na pandemia. Caso a PEC 95 fosse prolongada até 2036 a redução seria na ordem de R$ 400 bilhões, o que significaria “rasgar” os avanços sociais conquistados na Constituição Federal de 1988. Felizmente a política de teto dos gastos foi derrotada nas eleições presidenciais do ano passado, tendo o Governo Lula conseguido aprovar recentemente no Congresso Nacional uma política fiscal substitutiva. A pandemia de Covid-19 demonstrou de forma cabal a importância da defesa do SUS, apesar do caráter negacionista do governo Bolsonaro, representado por um general Ministro da Saúde que ao assumir disse não conhecer o SUS, já que costuma usar o serviço dos militares.

A reconstrução do Brasil passa pelo fortalecimento do SUS e por um Ministério da Saúde comprometido apenas com esse objetivo de interesse público. A sociedade brasileira precisa rechaçar a tentativa atual de parlamentares fisiológicos do “Centrão”, de mais uma vez abocanhar o Ministério da Saúde, como ocorreu no governo Bolsonaro, a título de prebenda patrimonialista do Estado, sob pretexto de barganha nas condições de governabilidade do governo Lula. Além disso, o fortalecimento do SUS exige a reconstrução de suas instâncias participativas de controle social. Como é sabido, o projeto autoritário e ultraliberal da coalizão que apoiou Bolsonaro atacou fortemente a dimensão participativa da democracia no país. Dentre dezenas de conselhos e conferências de políticas públicas, que foram extintas ou reduzidas de poder por meio do Decreto 9.759/2019, encontra-se a Conferência Nacional da Saúde, uma das mais expressivas, inovadoras e efetivas, desde a redemocratização². As conferências de políticas públicas constituem uma inovação democrática genuinamente brasileira, que fortalecem com participação social a execução e o controle social das políticas governamentais, na medida que possibilitam uma interação institucional entre os diversos atores da sociedade civil e os atores estatais e políticos da gestão pública. Nesse sentido, é muito salutar que a retomada da democracia participativa tenha iniciado com a realização da 17ª Conferência Nacional da Saúde, entre os dias 02 e 05 de julho em Brasília, após etapas preparatórias nos municípios e estados da federação. A Conferência adotou o lema “Garantir Direitos, defender o SUS, a Vida e a Democracia”. A retomada da participação em nível nacional também está ocorrendo por meio do processo do Plano Plurianual Participativo (PPA), com as Plenárias presenciais e o sistema virtual que estão ocorrendo nos 27 estados da Federação. Apesar dos desafios colocados à escala dessa inovação, trata-se de um primeiro passo que precisa evoluir para a criação do Orçamento Participativo Nacional, conforme abordamos recentemente como objeto de contribuição do Observatório das Metrópoles.

Após uma década de retrocessos democráticos e implementação do projeto neoliberal, a retomada da participação nas políticas públicas precisa ser fortalecida também nas cidades. A gestão democrática das cidades, defendida historicamente pela plataforma da Reforma Urbana, significa também o fortalecimento do controle social no SUS como um método relevante do bem-estar urbano. Nas cidades, a defesa igualitária do bem-estar urbano requer a participação ampla, vigilante e engajada na gestão da saúde pública para a maioria da população. O Observatório das Metrópoles valoriza e promove esse objetivo. E para celebrar o início da reconstrução do país, em contraste com os anos obscuros que vivemos, estamos compartilhando o relato da 17ª Conferência Nacional da Saúde que faz Selvino Heck, histórico ativista e delegado de movimentos populares urbanos nessa Conferência. A coluna de Selvino Heck foi publicada originalmente no Brasil de Fato, site parceiro do Observatório. Boa leitura!

17ª Conferência Nacional de Saúde. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil.

Amanhã vai ser outro dia!

Selvino Heck, 07 de Julho de 2023

A saúde de um povo depende de um país, de uma nação soberana construídos coletiva e solidariamente. Foi lindo. Foi tri. Definitivamente, o Brasil está saindo dos tempos nebulosos, e voltando a sorrir e sonhar.

A 17ª Conferência Nacional de Saúde, acontecida esta semana em Brasília, e da qual fui delegado titular representando a ANEPS, Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde, e o Grito das Excluídas e dos Excluídos, falou e cantou em alto e bom som, “Amanhã vai ser outro dia, SUS”. O tema geral da Conferência foi: Garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia. Participaram mais de 4.000 delegadas e delegadas de todo Brasil, eleitos em Conferências estaduais e municipais e em Conferências Livres, e mais de 1.000 convidadas/os.

Poucas vezes pôde-se ver o Brasil reunido com todas as suas faces, todas as suas cores, todas as suas bandeiras, todas as origens, todas as crenças, todos os paladares, todas as necessidades, todos os desejos, todas as urgências, todas as energias, todos os saberes, todas as lutas, todas as utopias. Eram negras e negras, eram mulheres, eram indígenas, era o povo LGBTQIA+, eram jovens, eram idosas e idosos, eram trabalhadoras e trabalhadores, eram aposentadas e aposentados, eram pessoas com deficiência, eram usuários, eram gestores, eram conselheiras e conselheiros, eram movimentos populares e sociais, movimento sindical do campo e da cidade. Um mar de gente conversando entre si, dialogando, loucas e loucos para ver Lula na Conferência. Lula esteve presente. Todas e todos querendo que a ministra Nísia Trindade, da Saúde, continuasse ministra. E Lula garantiu sua permanência.

As palavras do presidente do CNS, Conselho Nacional de Saúde, Fernando Pigatto, ele sempre elétrico, presente, alegre, atencioso com todas e todos, são proféticas, num momento histórico: “Vamos continuar cobrando a responsabilização de quem cometeu crimes durante a pandemia. Presidente do CNS diz ser preciso reparar os direitos violados pelo governo Bolsonaro” (Brasil de Fato RS, 01.07.2023). Nas palavras de Pigatto: “A Conferência é um processo de construção coletiva, se não fossem o SUS e o controle social, teríamos muito mais vidas perdidas na pandemia. Precisamos fazer do luto a luta e não podemos deixar cair no esquecimento. O controle social não se dá por acaso, é base de muita luta. A pandemia só potencializou a importância do SUS e seus desafios. A Conferência da Saúde vai ser uma virada histórica do processo de Conferências e vem num momento de retomada da participação, reafirmação e radicalização da democracia.”

O SUS foi defendido com ardor e coragem na Conferência, o SUS que garantiu a vida de brasileiras e brasileiros em meio a uma pandemia e ante um governo genocida, o SUS que é fruto da VIIIª Conferência nacional de Saúde, em 1986, da luta nas ruas, da mobilização social, Conferência que preparou sua presença na Constituinte de 1987 e sua consolidação na Constituição Cidadã.

A 17ª Conferência teve 4 Eixos Temáticos: 1: o Brasil que temos, o Brasil que queremos; 2: o papel do controle social e dos movimentos sociais para salvar vidas; 3: garantir direitos e defender o SUS, a vida e a democracia; 4: amanhã vai ser outro dia para todas as pessoas.

A saúde de um povo depende de um país, de uma nação soberana construídos coletiva e solidariamente, ninguém soltando a mão de ninguém. A saúde precisa de controle social e participação popular. A saúde está unida na defesa da vida e da democracia em todos os níveis e sentidos. Assim, a saúde garante que hoje e amanhã serão outro dia para todas e todas, sem exclusão de ninguém, com direitos, dignidade, justiça, igualdade.

Os debates por vezes foram acalorados. Afinal, era gente vinda de todo Brasil que não se conhecia, mas sabia que o principal e o que unia todas e todos era a defesa da vida, da natureza, o cuidado com a Casa Comum.

Cantava Chico Buarque em tempos difíceis, num hino profético inesquecível:

“Apesar de você amanhã vai ser outro dia./ Quando chegar o momento,/ esse meu sofrimento/ vou cobrar com juros, juro./ Todo esse grito contido,/ esse samba no escuro./ Apesar de você amanhã vai ser outro dia./ Você vai ter que ver/ a manhã renascer/ e esbanjar poesia./ Como vai se explicar,/ quando o céu clarear/ de repente, impunemente?/ Como vai abafar/ nosso coro a cantar na sua frente?/ Apesar de você amanhã há de ser outro dia./ Você vai se dar mal/ etcetera e tal/ la la la la lalaia.”

Amanhã vai ser outro dia, com certeza, cantaram milhares de brasileiras e brasileiros na 17ª Conferência Nacional de Saúde, anunciando novos tempos, anunciando o futuro, anunciando a alegria, anunciando a boa nova de que o povo brasileiro está mais que nunca vivo, desperto, cheio de fé e coragem, pleno de amanhã, sonhos e utopia. Viva o SUS!

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. Edição: Katia Marko.


¹ Professor Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisador do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.

² Sobre os retrocessos, ver o Capítulo 13 – “Democratizar a democracia para reconstruir a nação”, que publicamos no livro “Reforma Urbana e Direito à Cidade – Questões, desafios e caminhos”, organizado por Luiz Cezar de Queiroz Ribeiro, no âmbito do INCT Observatório das Metrópoles, em 2022.