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As explosões da rua: o que e como podemos compreender?

Em que medida as ruas estão introduzindo uma temática nova? A politização da questão urbana pela enunciação das múltiplas dimensões dos conflitos que se armam em torno da produção e uso da cidade; entre a cidade-mercadoria e a cidade-riqueza social promotora do bem-estar da coletividade. Neste artigo Luiz Cesar Ribeiro e Nelson Rojas mostram que a ação dos indignados tem sugerido a conformação de uma Nova Cultura Política, que traz como traços centrais a automobilização, em detrimento das formas clássicas de ação coletiva no campo da política, a orientação em torno valores pós-materialistas e a ideologia da horizontalidade.

O artigo “As explosões das ruas: como podemos compreender?”, de Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Rojas de Carvalho, é uma das contribuições do INCT Observatório das Metrópoles para o debate sobre o atual contexto político que vive o país, no qual parte da população foi para as ruas reivindicar melhores serviços, transparência e representatividade política. Como pano de fundo do debate a gestão e os serviços dos grandes centros urbanos, a metrópole enquanto barreira e também agente da ação da transformação social brasileira.

 

As explosões da rua: como podemos compreender?

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

Nelson Rojas

Se hoje o número de indagações ultrapassa de longe os ensaios de resposta sobre a natureza e o sentido dos movimentos reivindicatórios que mobilizaram e mobilizam os jovens nas praças e avenidas das principais cidades do País, se a cautela analítica prevalece no campo da reflexão e a prudência no terreno da ação das lideranças políticas, algumas hipóteses podem e devem ser levantadas em relação a duas dimensões que têm figurado como novas e inesperadas expressões desse movimento de natureza e extensão também inéditas: (i) a forma de ação – avessa a todas as organizações associativas tradicionais, notadamente os partidos políticos, mas também sindicatos, associações profissionais e comunitárias, etc.  – e (ii) o objeto da ação – uma agenda difusa de temas de orientação ética e moral, deflagrada por um problema central da vida das grandes cidades – a precariedade do transporte público e crescente limitação da mobilidade urbana. Problema, por seu turno, que parece no correr dias ter-se alastrado para outros aspectos do cotidiano das cidades brasileiras– na crítica à precariedade dos seus serviços básicos – que estão na raiz de nosso mal-estar urbano. Da análise dos movimentos das ruas, devemos destacar, antes de mais nada, que os jovens promoveram uma associação inédita entre  a crítica ao nosso modelo de cidade, de um lado,  e a defesa de valores éticos que denunciam aspectos patrimonialistas do nosso Estado e a dinâmica excludente e segregacionista da vida de nossas cidades, de outro.

O descolamento e mesmo visão crítica dos jovens em relação aos partidos políticos em todas as passeatas – exclusão que não poupou novas legendas como o PSOL ou PSTU – traduz fenômeno que nem é peculiar à situação brasileira, nem representa novidade para aqueles que acompanham a cena política aqui e alhures: a crise dos pilares centrais das democracias representativas – em especial, a perda crescente de legitimidade do sistema dos partidos políticos,  como instrumentos de vocalização das clivagens sociais  e das demandas cidadãs -, trata-se de fenômeno de anos. A deserção da militância dos partidos tradicionais, o crescimento dos eleitores independentes, a volatilidade partidária, o surgimento de legendas novas e candidatos independentes trata-se de eventos, que salpicam nas principais democracias consolidadas europeias há pelo menos vinte anos.

Cabe aqui assinalar, no entanto, que se o afastamento entre o sistema político e a cidadania é tendência do conjunto das democracias, entre nós o distanciamento entre a pólis e a demos parece ter assumido uma dimensão inaudita. Vale aqui uma autocrítica por parte daqueles que avaliaram a governabilidade de nosso sistema político tão-somente a partir do segundo andar desse sistema, a saber, do exame da articulação entre os poderes, notadamente, a partir das relações entre o e executivo e legislativo, ou seja, focando a análise apenas nos sinais do aparente sucesso do nosso presidencialismo de coalizão. Para estes analistas, o presidencialismo de coalizão bem azeitado seria condição suficiente para garantir ao País as condições de governabilidade. Ora, esquecemos, com raras exceções, de olhar para o primeiro andar de nosso sistema político, a saber, para os mecanismos de representação, para a capacidade de o sistema representativo absorver e processar as demandas sociais.

Vale ainda assinalar para um aspecto não menos importante da dinâmica política dos atuais movimentos. Tudo leva a crer que nossos indignados tenham por base social jovens oriundos da classe média clássica, ou seja, os detentores de parcelas expressivas do capital cultural da sociedade. A classe média que desde 2004 se viu desalojada da atual coalizão de forças no poder, a saber, coalizão que comporta as elites conservadoras e as pretensamente progressistas e os segmentos populares tradicionalmente desorganizados e transformados pelos think tanks do establishment na “nova classe média”. Em “As bases sociais lulismo”, André Singer mostrou com clareza a transformação ocorrida na base da coalizão no poder ao longo dos últimos anos: a classe média urbana que constituiu a base da eleição de Lula em 2002 foi substituída pelos segmentos mais pobres a partir de 2004, com a expressiva ampliação de programas de inclusão como o bolsa-família e sob os impactos políticos da sua inserção no mercado de consumo dos bens duráveis. Não seria equivocado afirmar que, fora da coalizão de poder, órfã de representação política e eventualmente ameaçada em suas fronteiras de distinção social, as ruas vocalizam em grande medida o deslocamento desse segmento social para as margens do esquema de poder, além da incapacidade de qualquer força política capaz em representá-la.

Cabe, por fim, avaliarmos o que para muitos analistas representa o aspecto mais enigmático das ações: a forma em que jovens multiplicaram-se pelas ruas, sem qualquer sinalização de lideranças carismáticas, a partir de redes sociais, numa escalada em que progressão dos números se acompanhava pela diluição e mesmo alteração da agenda inicial e pela absoluta falta de condução. A primeira pergunta que se faz é: trata-se de um movimento social? Cremos que não. Estamos diante de um fenômeno de ação coletiva, mas não de um movimento social. Este pressupõe ao menos estratégia e, em alguns casos, táticas. As mobilizações até o presente acompanham-se pela própria definição do significado ou dos significados últimos da ação.

A forma de ação de nossos indignados não seria novidade para um conjunto de analistas que tem sugerido e verificado que concomitante à crise das instituições ganha terreno das democracias uma Nova Cultura Política, que traz como traços centrais a automobilização, em detrimento das formas clássicas de ação coletiva no campo da política, a orientação em torno valores pós-materialistas e a ideologia da horizontalidade (isto é, a recusa a toda e qualquer relação vertical). A busca de reconhecimento e a auto-expressão são ingredientes adicionais presentes no que chamaríamos de nova cultura cívica. Se são os jovens e mulheres os principais atores portadores desta nova cultura política, aqui vale uma nota sobre a peculiaridade brasileira: vivemos momento singular de sua história demográfica. Os jovens de 14 a 24 anos passam a compor a coorte de maior peso no conjunto da população brasileira, especialmente nas metrópoles, o que traz impacto e alterações substantivas na dimensão do trabalho, da educação e da família.

Sem sombra de dúvida, os atos que ocorreram e ocorrem nas ruas seguiram de maneira quase que coreografada o roteiro dos elementos centrais dessa nova cultura cívica: jovens movidos por uma agenda difusa de natureza pós-materialista – com a ênfase na cobrança de comportamento ético das lideranças políticas -, a auto-mobilização e a recusa de atribuição de legitimidade tanto às organizações políticas tradicionais (partidos, sindicatos e movimentos organizados) como a líderes carismáticos, com o espaço público e a ocupado por jovens ciosos de reconhecimento e de auto-expressão. Se essa análise tem pertinência, podemos desde já projetar uma consequência dos atos em curso: dificilmente pode-se esperar das ruas o renascimento da vida associativa como no passado conhecemos. Trata-se de novo civismo.

Civismo e modalidade de participação em congruência com o que se designa por efeito metrópole sobre a constituição do sujeito: os movimentos nascem do caldo cultural própria da metrópole. Cabe aqui lembrar que, se as primeiras reflexões dos clássicos sobre a vida nas cidades, com a de Simmel, supunham o aniquilamento das individualidades pela urbis, a visualização dos movimentos expressa algo novo, um próprio metropolitano, com dinâmica avessa àquela antevista pelos estudos inaugurais sobre o efeito da vida urbana. Ao invés de expressar uma opressão dos indivíduos, a vida espiritual da metrópole abre espaço para sua mais plena manifestação: cada um é convidado a criar a sua reivindicação, insatisfação e rebeldia. Longe de produzir o nivelamento homogeneizador e anulador das diferenças, cultura metropolitana traz o seu contrário: o coletivo sem vida, ganha espírito pelas manifestações de todas as individualidades possíveis. A incongruência, diversidade e mesmo antagonismo das palavras de ordem, insígnias e cartazes vistos nas ruas nesses últimos dias são a expressão mais genuína desse espírito.

Cabe, por fim, lembrarmos que o mal-estar urbano constitui e estopim das manifestações subsequentes, mal-estar focalizado em tópico de relevância que atravessa a dinâmica das nossas cidades: a precariedade do sistema de transporte e mobilidade urbana cada vez mais exígua. Mas, este dois problemas são apenas a ponta de um grande iceberg mergulhado no sentimento de indignação dos habitantes das grandes metrópoles diante dos evidentes efeitos da privatização da política. A cidade vem sendo transformada em máquina de produção de emprego, renda, consumo e votos que reproduz em nova escala e novos formatos os velhos e os novos interesse da acumulação privada de riqueza e de poder político. A experiência quotidiana dos moradores das grandes cidades produz um forte sentimento da dissociação aguda entre o sistema político e sociedade.  Onde é decidia a realização das grandes obras apresentadas como padrão FIFA ou padrão Comitê Olímpico? Quem decide? A quem recorrer quando os sucessivos desastres urbanos acontecem? Cabe aqui especularmos em que medida as ruas estão introduzindo uma temática nova: a politização da questão urbana pela enunciação das múltiplas dimensões dos conflitos se armam em torno da produção e uso da cidade. Entre a cidade-mercadoria e a cidade-riqueza social promotora do bem-estar da coletividade.

 

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro – coordenador nacional do INCT Observatório das Metrópoles e professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ)

Nelson Rojas de Carvalho – professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pesquisador do Observatório das Metrópoles na Linha sobre Governança metropolitana.