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Democracia e governo local: dilemas da reforma municipal no Brasil

O INCT Observatório das Metrópoles lança a 2ª edição do livro “Democracia e governo local: dilemas da reforma municipal no Brasil”, uma análise sobre a descentralização das políticas públicas municipais no país, a institucionalização de mecanismos que combinam democracia representativa com democracia direta; e a instituição de um sistema político redistributivo de renda e bens públicos. Para o autor Orlando dos Santos Jr., a gestão democrática local continua atual e parte da agenda pública; porém o país vive uma onda neoliberal que coloca novas questões para a gestão das cidades, como disputas municipais, privatizações e políticas de exceção.

O livro “Democracia e governo local” foi publicado originalmente em 2001 pelo Observatório das Metrópoles. A publicação era resultado da tese do professor Orlando dos Santos Jr. (IPPUR/UFRJ-FASE), com orientação do Profº Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro.

O Observatório lança agora a 2ª Edição pela Editora Letra Capital, e disponibiliza o livro para download em formato pdf, seguindo a sua política de difusão científica com a disponibilização ampla e gratuita de toda a sua produção de conhecimento.

A seguir uma conversa com Orlando dos Santos Jr. sobre as mudanças e permanências sobre o tema da democracia e governança local. E mais a Apresentação do livro.

ENTREVISTA ORLANDO JR.

O Observatório das Metrópoles promove o lançamento da 2ª edição do livro “Democracia e Governo Local”. Passados 15 anos da 1 ª edição desse teu estudo, o que mudou nesse período em relação chamada governança democrática local?

Orlando Jr.: Há mudanças e permanências nesse período. A pauta da questão democrática continua sendo discutida, continua na agenda pública. Os governos municipais assumem cada vez mais responsabilidades, sendo que desde a Constituição de 1988 os municípios vem assumindo mais responsabilidades, nesse contexto temos o Estatuto da Cidade e outras ações. As atribuições sofrem mudanças de acordo com o contexto político e econômico do país. Enfim, os governos municipais são entes relevantes na gestão do território brasileiro. Alem disso, as formas de controle social, os limites e desafios para a democratização da gestão local, de forma que os governos locais expressem os desejos e anseios do cidadão, de forma que os governos locais tem capacidade de pactuar com os anseios daquele território. Essas questões continuam como questão na agenda pública brasileira. E, portanto, vejo que há uma continuidade com o estudo realizado anteriormente – ou seja, há um debate em torno da democracia local que continua vivo.

O livro mostra algumas possibilidades e limites sobre a efetivação da chamada democracia local: questões vinculadas à cultura local, ao associativismo, o impacto das desigualdades econômicas para a gestão democrática local, e também mostra o papel dos canais institucionais para a transformação da cultura local de uma gestão democrática – conselhos etc – que geram um impacto nessa cultura.

Por outro lado, há mudanças: os avanços das idéias neoliberais, o papel dos grandes projetos na transformação local, o acirramento da competição intermunicipal, enfim uma série de fatores que desafiam na atualidade os municípios para pensar formas de gestão mais solidárias, que não sejam fundadas na competição, mas sim na solidariedade e cooperação mutua. Além disso, como podemos pensar a agenda de privatizações, as parcerias público-privadas. E como pensar em uma lógica supra-local, que no caso dos municípios que integram regiões metropolitanas o pensamento seja de integração, não de exclusão.

Enfim, há novos desafios para a gestão das cidades, essa onda neoliberal que vemos agora no Brasil gera novas questões para a gestão e democracia locais.

O momento que publiquei o livro “Democracia e Governo Local” era um momento mais esperançoso em relação ao ideário da Reforma Urbana. Agora temos uma onda neoliberal que incide sobre os municípios, que colocam novas questões para os municípios como práticas de exceção, violações de direitos humanos, retrocessos no campo da participação democrática. O Brasil, nesse sentido, está vivendo um momento mais crítico – e que deve ser acompanhado e avaliado.

Faça o download no link a seguir do livro “Democracia e Governo Local”.

Introdução

Por Orlando dos Santos Jr.

O presente trabalho tem por objeto as transformações nas instituições de governo local no Brasil1. Serão discutidos, a partir do recorte da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, os dilemas e os desafios da reforma institucional brasileira no sistema de decisões no plano municipal na perspectiva da democracia. Entendemos por transformações nas instituições de governo local as mudanças nas arenas decisórias e dos atores nelas envolvidos, materializadas nos seguintes processos: (i) as progressivas municipalização e descentralização das políticas públicas; (ii) a institucionalização de mecanismos que combinam os princípios da democracia representativa com a democracia direta; e (iii) a instituição de um sistema político redistributivo de renda, serviços e bens públicos, conformando uma espécie de “welfare municipal”.

Nosso estudo parte da constatação de que se desenvolve uma reforma institucional no país, caracterizada pela descentralização das políticas públicas, amplamente disseminada pelos municípios brasileiros. Essa disseminação está promovendo um processo de profundas mudanças nas instituições de governo local, bem como no debate sobre o papel e a gestão das cidades, materializadas em novas formas de organização do poder local, em um contexto de crescentes municipalização das políticas sociais e descentralização administrativa.

Na verdade, esse processo é parte de um contexto internacional, no qual se destacam as transformações no Continente. Assim, desde os anos 80 assistimos a três fenômenos conexos, mais ou menos gerais nos países da América Latina. O primeiro diz respeito ao processo de democratização dos Estados nacionais com o fim dos regimes militares que vigoraram durante anos e com a assunção das instituições típicas dos regimes democráticos – eleições diretas para o poder executivo e legislativo, parlamento, partidos políticos, etc. O segundo está relacionado à inserção das economias nacionais no movimento da globalização, que absorvem o novo padrão produtivo baseado na flexibilidade do trabalho, e à implementação de políticas de ajuste econômico, de nítida orientação liberal-conservadora. O terceiro, por fim, refere-se à revalorização da esfera local, considerada a esfera capaz tanto de promover melhor desenvolvimento social, em razão da sua proximidade com os cidadãos, como de operar as mudanças sociais necessárias à maior eficiência e à maior competitividade econômicas requeridas pela inserção das cidades na dinâmica da globalização.

Diferentes concepções políticas têm procurado responder aos novos desafios apresentados à gestão das cidades, em um processo crescente de municipalização das políticas sociais e de descentralização administrativa. Nos Estados Unidos, Osborne e Gaebler (1994) estudam as inovações no modo de funcionamento das esferas federal, estadual e local do governo americano e constatam que o espírito empreendedor está transformando o setor público, o que, para eles indica que está em andamento uma reinvenção do governo, ou seja, uma nova maneira de governar. Também os estudos de Castells e Borja (1996) denotam a necessidade de redefinir as competências dos municípios de forma diferenciada, segundo cada realidade e seguindo critérios tais como a proximidade na relação com a população, a capacidade na gestão de recursos políticos, sociais, econômicos e técnicos, a associação com outros níveis da administração pública e com agentes privados, e o atendimento das demandas sociais requeridas pela população.

Os organismos multilaterais, em particular os ligados à Organização das Nações Unidas – ONU e que atuam na questão urbana, têm tido papel central na difusão de novas abordagens e são responsáveis ainda pelo financiamento de diversos projetos de impacto sobre as cidades nos países em desenvolvimento. É particularmente significativo que o Centro das Nações Unidas para Assentamentos Humanos – Habitat, o Banco Mundial e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, tenham agendas urbanas específicas para a década de 90. Percebe-se que há uma clara mudança nas políticas de desenvolvimento urbano promovidas por essas agências, que passam da ênfase na implantação de projetos específicos para uma compreensão mais integrada dos processos urbanos, das políticas de ajuste estrutural e da capacitação técnica de quadros locais (Werna, 1996).

É nessa conjuntura internacional, marcada pela mudança dos referenciais de planejamento e gestão das cidades, que se introduz o debate sobre a eficiência e a eficácia da ação governamental, e, conseqüentemente, sobre o desempenho da gestão governamental. Com efeito, torna-se cada vez mais importante a construção de indicadores capazes de legitimar e certificar o desempenho governamental, logo, de possibilitar a avaliação das boas práticas de gestão municipal.

No Brasil, esse debate se desenvolve no contexto da reforma institucional impulsionada pela Nova Constituição Federal de 1988. Sua promulgação, ainda que com limites principalmente quanto ao financiamento das políticas sociais nela consagradas, definiu uma agenda reformista, que se caracteriza por uma concepção universalista quanto aos direitos sociais, redistributiva quanto à renda e democrática quanto à gestão pública. Tal agenda, construída em torno do movimento pela Constituinte, foi sustentada pela mobilização de amplos setores da sociedade organizada, congregando movimentos sociais e sindicais, organizações não-governamentais, entidades de pesquisa e setores técnicos. No seu bojo, constituiu-se a agenda da reforma urbana, que já defendia a necessidade da descentralização política e da democratização das cidades, cujo centro tinha por base uma nova concepção de planejamento urbano, fundado, por um lado, em princípios políticos ligados à democracia e à justiça social e, por outro, na compreensão da dinâmica urbana como reprodutora das desigualdades sociais constitutivas da dinâmica do nosso modelo de desenvolvimento econômico (Santos Junior, 1995).

Não obstante a incorporação generalizada da agenda da reforma urbana no plano jurídico institucional, sua implementação e gestão encontram inúmeras dificuldades de efetivação pelos municípios. A partir do governo Collor de Melo (1990-92), vemos uma nova conjuntura político-ideológica afirmar-se no país, por meio do avanço de outra agenda, ligada às reformas de ajuste estrutural, posteriormente aprofundada pelo governo Fernando Henrique Cardoso (1994-98 / 1999-2002). O conjunto de mudanças assinaladas ocorre em um contexto aparentemente muito adverso para a implementação do ideário reformista democrático. Com efeito, assistimos ao agravamento da crise urbana, da crise econômica e da crise política. Essa nova conjuntura é marcada por um crescente consenso em torno da agenda neoliberal, cujo centro propõe uma política minimalista de intervenção do poder público, tornando duvidosa a ampliação das políticas de caráter universalista; no plano econômico, aprofundam-se as crises fiscal e financeira do Estado, impondo limites à política redistributiva; no plano social, entram em crise os movimentos sociais que marcaram a cena política brasileira na década de 80, fragilizando os canais de participação e de ampliação da democracia. Portanto, a forma de inserção do país no movimento da globalização apresenta novas questões e aprofunda os desafios para a instituição de um modelo democrático de gestão das cidades.

Apesar disso, desde o início dos anos 90, assiste-se a um crescente processo de descentralização e municipalização das políticas públicas, intensificado não somente pela elaboração das Constituições Estaduais e das Leis Orgânicas Municipais – estas elaboradas pela primeira vez de forma autônoma pelos municípios – , mas também por um conjunto de leis e políticas, federais e estaduais, de incentivo e de transferência de competências para o âmbito municipal. Não restam dúvidas, os municípios ganharam poder.

Identificamos, nesse processo, um interesse cada vez maior de diversas instituições pelo debate sobre desempenho institucional e práticas exemplares, as denominadas best practices. Pode-se observar, com efeito, que tem havido mudança de enfoque nos referenciais teóricos, em que se passa de uma problemática política para outras mais técnico-administrativas: como construir bons governos, como produzir boas práticas, como tornar os governos eficazes e eficientes. Nesse contexto, ganham força as propostas de planejamento estratégico e de desenvolvimento local. Apesar da enorme imprecisão dessas categorias, é importante registrar que as propostas correntes parecem autonomizar as cidades, concebendo-as como ator com supostos interesses próprios. Dessa forma, os atores e conflitos sociais, privilegiados no diagnóstico que fundamentava o ideário da reforma urbana, permanecem agora subsumidos à busca de um suposto consenso, imanente ao interesse de desenvolvimento econômico e social da cidade.

Em contraposição às concepções teóricas reificadoras do espaço, em que são enfatizados na dinâmica política os projetos e os arranjos institucionais, entendemos que é necessário compreender o espaço das cidades como espaço social, resultado de lutas pela apropriação de bens e serviços, e como expressão da luta pelo poder. Desde Bourdieu (1997:163), sabemos que “o espaço é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce”. Como decorrência dessa luta pelo poder, o espaço adquire uma dimensão sociocultural decisiva nos processos de desenvolvimento, e cria um ambiente que pode tanto favorecê-lo quanto bloqueá-lo. Entre os diversos elementos desse ambiente insere- se o grau de associativismo, que inclui na agenda política a questão da constituição dos sujeitos coletivos.

O fato é que esse debate tem provocado diversas mudanças nas instituições de governo municipal no Brasil, na medida em que legitima e deslegitima determinadas práticas e concepções dos atores políticos no plano local. E é nesse contexto que se desenvolve o processo de descentralização municipal, e que se redefinem, portanto, atribuições e competências em torno das políticas sociais. Sejam quais forem as razões determinantes desse processo, hoje podemos afirmar que vigora no Brasil um novo formato institucional, em grande parte marcado pela descentralização da gestão das políticas sociais do âmbito federal para as esferas estadual e municipal de governo (Arretche, 2000)3. É nesse ambiente de redefinição dos termos políticos e das práticas institucionais dos municípios brasileiros que apresentamos as duas questões que nortearão o desenvolvimento do nosso estudo, assim resumidas:

  1. Em primeiro lugar, em que medida diferenças no contexto social podem determinar culturas cívicas diversificadas entre os municípios e estabelecer diferentes padrões de interação entre a sociedade e as instituições governamentais democráticas.
  2. Em segundo lugar, se e em que medida podemos afirmar que a descentralização e a municipalização das políticas públicas no Brasil caminham na direção do aprofundamento da democratização da esfera local de governo e na instituição do modelo de governança democrática. Em outros termos, procuramos identificar se esse processo está gerando oportunidades e condições para o exercício dos direitos e liberdades políticas e se estão sendo criados novos canais e mecanismos que propiciem maior participação dos cidadãos e aumentem a transparência e a responsabilidade pública dos governo locais.

Em síntese, o objetivo do nosso trabalho é, portanto, discutir as transformações recentes nas instituições de governo local no Brasil, impulsionadas pelo governo federal e pelos governos estaduais após a Constituição federal de 1988. Para tanto, procuramos identificar alguns dos aspectos relacionados ao contexto social, político e institucional dos municípios, e discutir seus impactos nas possibilidades de instauração de novos padrões de interação entre governo e sociedade, na perspectiva da democracia local, tomando as cidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro como ponto de referência da nossa pesquisa empírica.

Nossa escolha quanto ao recorte geográfico do nosso estudo tem sua razão de ser. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro foi contemplada por três motivos básicos: (i) constitui um caso exemplar da problemática metropolitana no contexto brasileiro; sua territorialidade é composta por fortes desigualdades entre o núcleo urbano e a periferia, e nestas, entre as áreas centrais e o entorno; (ii) as condições institucionais do seu município sede, o Rio de Janeiro, e as dos demais municípios são bastante diferenciadas, o que possibilita avaliar as circunstâncias de irradiação de novos modelos de gestão para as cidades médias e pequenas, que são quantitativamente mais expressivas no país; e (iii) a possibilidade de desenvolver pesquisas de campo e de ter acesso a indicadores produzidos pelo IBGE, bem como o acompanhamento pessoal de diversos processos políticos na região, permitiram uma melhor aproximação teórica com essa realidade. Dadas as diversidades regional e social do Brasil, temos consciência das limitações decorrentes da nossa escolha, e chamamos a atenção para a necessidade de relativização das avaliações e conclusões resultantes da nossa base empírica, quando forem generalizadas para o contexto nacional.