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Depoimento | IPPUR em Movimento

By 23/11/2011dezembro 18th, 2017Destaque

Equipe do IPPUR nos primeiros anos

O Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PUR), hoje no IPPUR/UFRJ, comemora 40 anos de existência neste ano. Resultado de um convênio da UFRJ com o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU), o PUR foi criado em 1971 com o objetivo de formar quadros capacitados para elaborar e implementar uma política urbana para o Brasil. Neste depoimento, o coordenador do Observatório das Metrópoles, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, conta sobre a crise institucional vivida no PUR na década de 1970, a resistência do corpo docente e dos alunos e a consolidação do instituto como um dos mais importantes espaços para a reflexão crítica sobre planejamento urbano e regional no país.

 

IPPUR em Movimento
Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro

Ingressei em 1979 no então PUR – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional – quando ele atravessava um momento de profunda crise institucional, decorrente da dispensa da quase totalidade dos seus professores como medida autoritária da reitoria da época para solucionar um conflito político iniciado em 1976. O Programa havia sido retirado do âmbito da Coordenação de Programas de Pós-Graduação em Engenharia – COPPE, onde nasceu como área de concentração do mestrado em engenharia da produção. Encontrava-se sob a tutela de uma comissão de professores externos a sua história anterior, cuja missão era extingui-lo após a conclusão do curso pelos alunos de duas turmas ainda matriculados. A imediata extinção do PUR havia sido impedida por aqueles alunos ao interporem uma ação na justiça que obrigava à universidade manter condições para que concluíssem as disciplinas e defendessem suas dissertações. Era necessário, portanto, recompor o corpo docente mínimo e, para tanto, a reitoria autorizou a contratação de professores na condição de visitantes por dois anos.

O PUR, naquele momento, resumia-se a três professores, sendo um a tempo parcial. Este pequeno coletivo de professores e aguerridos alunos inicia naqueles idos de 1979 uma trajetória de resistência que, pouco a pouco, se transforma em defesa da sobrevivência do PUR como experiência universitária acadêmica e politicamente relevante para um país que se urbanizou de forma tão acelerada. Trajetória dinamizada e impulsionada com as contratações posteriores dos colegas Carlos B. Vainer, Martin Smolka, Ana Clara Ribeiro e Rainer Randolph. Fomos todos contratados como professores-visitantes por dois anos para, em princípio, realizarmos a missão resultante da conquista dos alunos. Os detalhes desta luta de resistência, reconstrução e transformação ainda merecem registro não apenas como memória, mas, sobretudo, como a história de vitorioso processo de institucional building, até certo ponto inusitado e surpreendente. Ainda não será desta vez que esta história será contada adequadamente. Não há como relatar de maneira adequada nos limites deste modesto testemunho como estes fatores estiveram presentes ao longo do período no qual o quase extinto PUR se transformou no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR). Não há como reconstruir sem entrar em detalhes como a trajetória deste coletivo é simultaneamente a construção das biografias acadêmicas e profissionais dos indivíduos que nela foram agentes e atores. É impossível, ao mesmo tempo, narrar devidamente como o desenrolar desta história e a direção que assumiu expressam as particularidades da configuração social constituída pelo agrupamento contingencial de pessoas que vinham de outras e distintas histórias. O que tem de surpreendente e inusitado é como este coletivo, formado sob a influência de muitas circunstâncias, pôde em pouco tempo amalgamar concepções e intenções em um projeto coletivo que não apenas resistiu à extinção do PUR, como conseguiu reconstruí-lo em novas bases em um longo processo marcado pela combinação de fatores do acaso e da necessidade, da determinação e escolha, da razão e da paixão.

É incontornável, porém, mencionar a imbricação deste processo de institucional building com as mudanças da conjuntura histórica brasileira do final anos 1970. Não há dúvidas, com efeito, que a sobrevivência e a transformação do frágil PUR resultaram de um processo social mais amplo de resistência e de reconstrução do pensamento crítico ao autoritarismo e ao capitalismo conservador e concentrador implantado no País.  Aquele apaixonado e heterogêneo grupo entra na história do PUR no mesmo momento em que as classes populares entram em cena como novos atores sociais portadores dos ideais de democracia e justiça social.  Ganhamos capacidade de estabelecer uma luta de movimento no interior da universidade no momento em que o Povo em Movimento  luta contra a carestia, contra a ditadura e reivindica melhores condições de vida no campo e na cidade. A nossa luta pela pelo direito de existência legal na UFRJ se desenrola no clima social e político aquecido pelos movimentos dos moradores das periferias pelo direito à cidade. Defender a permanência do PUR ganha sentido e passa desde cedo a ser percebido como expressão da demanda da sociedade por conhecimentos, informações e competências que ajudassem a formular uma nova plataforma para o país.

Este clima não apenas enfraqueceu o autoritarismo universitário, como criou a base de unidade deste grupo para resistir à proposta de extinção e para construir um projeto em sintonia com as demandas da sociedade. Sem que ninguém tenha assim formulado, cria-se neste grupo uma espécie de programa comum em sintonia com as demandas da sociedade, que passa a orientar a reconstituição de estrutura de disciplinas e nos primeiros passos na direção da formulação de linhas de pesquisa. Os fundamentos deste programa comum permanecem, até hoje, como cultura coletiva institucionalizada, não obstante as transformações ocorridas ao longo do seu corpo docente e as mudanças internas e externas ocorridas ao longo destes 40 anos. Alguns deles permanecem ainda como desafios a serem enfrentados nos próximos anos. Nos mencionados limites do presente texto, mencionarei apenas dois destes fundamentos por sua importância na atualidade acadêmica e institucional do IPPUR e por suas estreitas conexões.

O primeiro é a incontornável necessidade da prática acadêmica interdisciplinar para conceber nos planos teórico e prático as complexas, muldimensionais e multicausais relações entre território, sociedade, economia e Estado. Esta concepção está na origem do surgimento do vasto campo dos estudos urbanos e regionais que assumimos como opção adequada, mas enfrentando as dificuldades decorrentes das pressões pela permanência da estrutura disciplinar da organização universitária, das políticas de ciência e tecnologia, além da concepção setorial das políticas públicas. Temos respondido às dificuldades mantendo uma estrutura disciplinar formativa, pela busca da composição ampla do corpo de professores e por práticas holísticas de pesquisas. Vivemos hoje, porém, uma nova situação que exigiram pensar outras estratégias. Por um lado, no campo dos estudos urbanos e regionais observamos fortes e preocupantes tendências de fragmentação do ensino e da pesquisa com a formação de programas de pós-graduação focados em temas muito específicos. Estas tendências têm como correspondências a fragmentação em áreas e subáreas da organização política científica e tecnológica na esfera do CNPq e da CAPES. O esquema abaixo ilustra esta fragmentação.

 

Este fato nos parece preocupante se considerarmos que não apenas somos um país urbano pelo fato tão amplamente divulgado das cidades concentrarem mais de 80% da população do país, mas em razão de termos um sistema urbano complexo, com a expressiva presença das metrópoles. Ele é composto por 37 grandes aglomerados urbanos onde residem aproximadamente 45% da população (76 milhões de pessoas) e se concentram 61% da renda nacional. Entre os 37 grandes aglomerados urbanos, temos 15 metrópoles, isto é, aglomerados que apresentam características próprias das novas funções de coordenação, comando e direção das grandes cidades na economia em rede. Isto é: concentração populacional, capacidade de centralidade, grau de inserção na economia de serviços produtivos e poder de direção medida pela localização das sedes das 500 maiores empresas do país, pelo volume total das operações bancárias/financeiras e pela massa de rendimento mensal. Os 15 espaços considerados metropolitanos têm enorme importância na concentração das forças produtivas nacionais. Eles centralizam 62% da capacidade tecnológica do país, medida pelo número de patentes, artigos científicos, população com mais de 12 anos de estudos e valor bruto da transformação industrial (VTI) das empresas que inovam em produtos e processos.  Essas 15 metrópoles reúnem, também, 55% do valor de transformação industrial das empresas que exportam. Temos, portanto, um sistema urbano que pode ser considerado importante ativo para um projeto de desenvolvimento nacional, frente às novas tendências de transformação do capitalismo.

Mas, ao mesmo tempo, nestas aglomerações estão concentrados também os grandes desafios a serem enfrentados, na forma de passivos resultantes de um modelo de urbanização organizado essencialmente pela combinação entre as forças de mercado e um Estado historicamente permissivo com todas as formas de apropriação privatistas das cidades, gerando uma urbanização caótica. Em consequência, o intenso e acelerado processo de urbanização transferiu do campo cerca de 39 milhões de pessoas entre 1950 e 1970 e gerou grandes cidades improvisadas e inacabadas, despreparadas, material, social e institucionalmente para o crescimento econômico baseado na dinâmica da inovação, na economia do conhecimento e na mobilização dos recursos relacionais mencionadas anteriormente.

O segundo fundamento é o papel que devemos exercer na construção de uma “teoria urbana” que reconstrua a necessária unidade do campo e que dê conta dos imperativos nele presentes. Imperativo da nossa presença ativa no debate internacional, objetivo tornado imposição das políticas de ciência e tecnologia brasileiras. Como dar conta deste imperativo sem submetermo-nos à razão imperialista, como bem formularam Bourdieu e Wacquant, pela qual as universidades dos países centrais exercem o poder como universais teóricos – temas e maneiras que somente têm legitimidade acadêmica em suas história políticas, intelectuais e acadêmicas. O enfrentamento deste imperativo não pode se concebido apenas como tarefa intelectual, pois esta razão imperialista tem a sua força alicerçada, por um lado, no controle dos mecanismos legítimos de difusão científica (revistas, editoras, entidades científicas ditas internacionais etc.) e, por outro, na capacidade de impor conceitos e teorias nos campos em que são formulados os desenhos das políticas públicas. O segundo imperativo decorre da necessidade de formularmos o que Robert Merton chamou de “teoria de alcance médio”, ou seja, formulações teóricas que se constrói entre as hipóteses de trabalho formuladas para dar conta das questões imediatas de pesquisas e a busca de formulações teóricas totalizantes capazes de ancorar compreensões mais globais. Em nosso campo acadêmico este esforço não é nada trivial, pois, de um lado, nele está presente uma miríade de objetos de pesquisas formulados de maneira fragmentada, isolada e “presenteista”, enquanto que, de outro lado, o esforço da conversão dos resultados de pesquisa em compreensões totalizantes das relações entre território, sociedade, economia e Estado impõem a compreensão de fenômenos marcados pela presença dos efeitos de grandes estruturas e longos processos.

O terceiro imperativo, por sua vez, relaciona-se com as características particulares do planejamento urbano e regional como um campo de produção de saberes cuja multiplicidade das fontes possíveis de legitimidade cria o perigo da heteronomia das bases de avaliação e, como consequência, bloqueios a uma prática fértil de interlocução e acumulação de saberes. É intrínseco ao nosso campo, com efeito, a produção de saberes que se legitimam por sua dimensão teórico-metodológica e, simultaneamente, saberes justificados por suas implicações práticas e mesmo experimentais, não podendo (e nem devendo) existir qualquer soberania de uma destas dimensões. Tal multiplicidade de modos de produzir, integrar, avaliar e julgar os saberes gerados em nosso campo está presente em forma de múltiplas tensões em salas de aula, nas bancas de teses e dissertações, na organização dos debates nas entidades acadêmicas do campo, na avaliação de pedidos de financiamento dirigidos ao CNPq, CAPES, etc.  Devemos tratar esta multiplicidade como simultaneamente virtude e desafio. Virtude por criar uma dinâmica aberta e rica a múltiplos olhares, sensibilidades, formas de pensar, maneira de expressão e difusão, de renovação e mesmo de revolução dos saberes instituídos.  O desafio é superar os perigos da naturalização e ossificação fragmentação do campo.

Nesse contexto, a importância acadêmica e política do IPPUR deve ser concebida reconhecendo o passado, mas pensando o futuro. Isso exige fortalecer o IPPUR como centro internacional de excelência no ensino e na pesquisa, visando à produção científica de novos conceitos e conhecimentos que busquem desvelar as contradições urbanas e regionais e os processos econômicos, políticos e sociais no contexto da globalização neoliberal. É o IPPUR em movimento.