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A Casa Fluminense, organização parceira do Observatório das Metrópoles, atua desde 2013 na construção coletiva de políticas e ações públicas voltadas universalmente a todo o território e população da cidade metropolitana do Rio de Janeiro.

Comprometida com a produção de dados, propostas e reflexões sobre a realidade de desigualdades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), a Casa Fluminense lançará no final de abril a pesquisa intitulada “Mapa da Desigualdade 2020“. A partir de uma série de infográficos, a publicação busca evidenciar os padrões de vida da população residente nos 21 municípios que compõem a RMRJ, utilizando para isso 23 indicadores sobre sete temas-chave: Mobilidade, Mercado de trabalho, Pobreza & Renda, Educação, Segurança Pública & Cidadã, Saúde e Saneamento Básico.

Além de qualificar o debate, a produção desse tipo de informação amplia o conhecimento sobre os territórios, possibilitando a construção de políticas públicas voltadas para a diminuição das desigualdades sócio-territoriais da RMRJ. O contexto da pandemia do coronavírus (COVID-19) tornou ainda mais evidente a precarização e a falta de acesso a direitos básicos por grande parte da população, especialmente das periferias da metrópole, evidenciando o papel fundamental do poder público na garantia de condições mínimas de sobrevivência, principalmente dos mais vulneráveis.

A convite do Observatório das Metrópoles, Guilherme Alves e Vitor Mihessen, membros da Casa Fluminense, analisaram esse contexto de desigualdade no que se refere a mobilidade. Marcada pela precarização e sucessivas crises há anos, a mobilidade da RMRJ tem agravado a situação de contágio pelo coronavírus em razão do aumento das aglomerações em estações e veículos. Através de dados de geolocalização dos ônibus, os autores denunciam a redução na oferta de serviço de transporte público que tem afetado diretamente os commuters precarizados da segunda maior região metropolitana do país.

Passageiros do transporte público. Foto: Marcello Casal Jr. (Agência Brasil).

Pandemia na metrópole: os impactos do coronavírus na mobilidade cotidiana da Região Metropolitana do Rio de Janeiro

Guilherme Alves¹
Vitor Mihessen²

A crise na mobilidade urbana cotidiana do Rio de Janeiro é um tema tratado por especialistas há anos. Durante o cada vez mais distante ano de 2013, Renato Gama-Rosa Costa, Claudia G. Thaumaturgo da Silva e Simone Cynamon Cohe publicaram um artigo na revista Cadernos Metrópole n.30 mencionando esta crise e suas origens. Desde então, temos acompanhado o fechamento de diversas empresas de ônibus na cidade do Rio de Janeiro, uma intervenção da Prefeitura no sistema BRT (Bus Rapid Transit) que não apresentou resultados e as promessas de licitação do sistema de ônibus intermunicipais e do bilhete único, ambas ainda não cumpridas. Nos trens e barcas, a redução de horários e a supressão de serviços é acompanhada pelo sagrado reajuste anual das tarifas.

Isto tudo e muito mais acontece em uma região metropolitana profundamente desigual, onde vivem 13 milhões de pessoas. Destas, aproximadamente dois milhões saem de suas casas todos os dias, rumo ao município do Rio de Janeiro, em busca de lazer, estudo ou trabalho, como aponta a Casa Fluminense com base nos dados do Censo de 2010. Os dados sobre mobilidade cotidiana na periferia da metrópole do Rio são alvo da dissertação do Vitor para o Programa de Pós-Graduação em Economia da UFF (MIHESSEN, 2014), e mostram o tamanho da desigualdade e a concentração das oportunidades de emprego e renda: nenhum município do Brasil tem um tempo de deslocamento casa-trabalho tão alto quanto Japeri, na Baixada Fluminense. Nenhum movimento pendular no país é tão grande quanto aquele de pessoas que saem de São Gonçalo rumo a Niterói, todos os dias. Enquanto isso, metade dos empregos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro estão concentrados no Centro do Rio, Zona Sul, Grande Tijuca e Baixada de Jacarepaguá, o núcleo econômico da metrópole.

Na dissertação do Guilherme, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ (ALVES, 2019), argumenta-se que a mobilidade cotidiana no Rio de Janeiro foi moldada, ao longo dos últimos cem anos, de acordo com o avanço das técnicas de transporte, que permitiram a construção de uma cidade que expulsa, com maior ou menor grau de sutileza, sua classe trabalhadora para as periferias. Favelas como a Rocinha, Rio das Pedras e Cidade de Deus são grandes áreas de habitação das classes pobres localizadas no núcleo metropolitano ou em suas margens imediatas. Contudo, como vimos, a economia da cidade formal cada vez mais depende da força de trabalho de sujeitos periféricos que enfrentam grandes deslocamentos diariamente. Em outras palavras: o funcionamento dos “serviços essenciais” da Zona Sul e da Barra da Tijuca depende da força de trabalho dos moradores da Rocinha, de Rio das Pedras e da Cidade de Deus, mas também dos moradores de Japeri e Santa Cruz.

Este sistema de reprodução da desigualdade foi atingido por um choque com a chegada do coronavírus (COVID-19) ao Rio de Janeiro. De acordo com as informações fornecidas pela Prefeitura do Rio, o surto teve início justamente no núcleo metropolitano do Rio de Janeiro, e ainda hoje esta região e parte do município de Niterói concentram a maioria dos casos registrados. Embora neste momento já seja possível questionar se a concentração de casos tem relação com o número de testes realizados no país e o acesso da população destes territórios ao sistema de saúde suplementar, é fato que a pandemia no Rio de Janeiro se apresenta primeiro nas áreas nobres, que acometeu viajantes recém chegados do exterior.

De repente, a configuração socioespacial da metrópole precisa enfrentar uma questão: é necessário que a população fique em casa, mas sem a circulação de pessoas a urbe deixa de funcionar completamente. Felizmente, os governantes cariocas e fluminenses iniciaram as medidas de redução de aglomerações no complexo fim de semana dos dias 14 e 15 de março de 2020. Infelizmente, por outro lado, estas medidas de isolamento pareceram não considerar a metrópole dos commuters precarizados que descrevemos.

Na primeira semana de restrições de atividades, entre os dias 16 e 20 de março, identificamos uma queda constante no número de ônibus em operação na cidade do Rio de Janeiro. O monitoramento foi feito através dos dados de geolocalização dos veículos, excluindo aqueles que estavam nas garagens ou que não emitiam sinal há mais de dez minutos. Na comparação entre os dias 12 e 20 de março, é possível perceber que a queda no número de ônibus em circulação no pico da tarde (18h) foi de 39,45%. Dentre os consórcios, aquele que apresentou maior redução na quantidade de veículos nas ruas foi justamente o Santa Cruz, com redução de 47,85%. A queda continuou na semana seguinte. Nos quinze dias entre 12 e 27 de março, percebemos uma redução de 62,30% nos ônibus em circulação, como ilustram o gráfico e os mapas a seguir.

Fonte: Gráfico elaborado pelos autores a partir de dados da Prefeitura do Rio de Janeiro.

Antes de avançarmos, um adendo: nosso monitoramento permite observar que, em média, num dia útil antes da confirmação da chegada do coronavírus (COVID-19) ao Rio, em 11 de março, o número de ônibus em circulação na cidade do Rio de Janeiro girava em torno de 4.500 veículos. No entanto, de acordo com sua Secretaria Municipal de Transportes, a frota operacional determinada é de 8.158 ônibus. Considerando que pelo menos 80% dos ônibus devem estar em circulação, deveríamos encontrar no mínimo 6.526 ônibus nas ruas durante o horário de pico. Portanto, mesmo antes da pandemia a frota operacional já contava com um déficit de dois mil veículos, cujos resultados são maiores intervalos e aumento da lotação.

Somando todos estes fatores, temos um cenário de redução da demanda pelo serviço de ônibus para a realização da quarentena e todos os protocolos oficiais sobre o distanciamento social. De acordo com os especialistas em saúde pública e economistas, esta redução é desejável até certos parâmetros. Contudo, diminuição da frota em serviço, que já estava sendo ofertado em números inferiores ao que é determinado em contrato, produziu imagens de ônibus cheios, o que nos causa profundo temor, pelo aumento do risco de contágio dos usuários. O que não precisamos neste momento é ter o serviço de transporte público contribuindo para a disseminação do novo coronavírus, pelo contrário, deve ser um aliado nos esforços de combate à pandemia. A nova configuração da cidade requer serviços especiais atendendo aos pontos de demanda, como serviços de saúde, mercados e farmácias. A tecnologia de contagem de passageiros através dos registros de embarque permite uma redistribuição da frota mais rápida e inteligente, atendendo a demanda de trabalhadores de serviços essenciais sem provocar superlotação.

No caso da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, infelizmente não há transparências. O livre acesso aos dados públicos de monitoramento de ônibus por GPS permitiria gerar informações para acompanhar e melhor planejar as mudanças na oferta do serviço, visando à efetividade das ações e à redução de desigualdades sócio-territoriais. Nesse caminho, por exemplo, a decisão do Governo do Estado de impedir que linhas intermunicipais acessem a capital, embora pareça ter boas intenções, provocou problemas. No Leste Fluminense, toda a população que precisa acessar a capital deve se concentrar na estação das barcas de Niterói. O resultado são as imagens diárias de aglomeração de pessoas exibidas nos telejornais. À Baixada Fluminense coube o trem como única alternativa de acesso à capital, provocando filas nas estações e vagões lotados.

No Oeste Metropolitano, municípios como Seropédica e Itaguaí, que não são servidos por transporte ferroviário de passageiros, contavam com o ônibus como opção de acesso à capital. Hoje os moradores destas cidades precisam se deslocar até Paracambi ou Nova Iguaçu para acessar a SuperVia, ampliando a pressão na demanda do serviço de trens, e ampliando o tempo de exposição fora de casa, já que houve aumento no tempo de deslocamento.

Conforme já mencionado, a metrópole tem uma configuração socioespacial de profunda interdependência entre os municípios. A redução ou supressão da oferta de transporte público não alterará esta dinâmica imediatamente. É preciso que sejam adotadas e mantidas as medidas de desestímulo à demanda por serviço de transporte, como a redução das atividades de comércio e serviços ao mínimo necessário.

Por outro lado, como citam Kelly Fernandes e Rafael Calábria, sendo o transporte um direito social básico, neste contexto deve-se garantir a oferta do serviço público de maneira a assegurar que essas viagens essenciais possam ser realizadas, especialmente com rapidez e garantindo o espaço mínimo de segurança entre as pessoas. No caso dos ônibus intermunicipais, eles podem assumir o papel de desafogar os transportes de alta capacidade, com embarques em paradas determinadas, sendo mantida a triagem para garantir que os passageiros que trabalham nas áreas de saúde, segurança, comércio e serviços de abastecimento sejam autorizados a embarcar.

Até agora, o que percebemos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro é a redução na oferta de serviço de transporte público a níveis que tendem a piorar o problema, com aumento das aglomerações em estações e veículos, e políticas de saúde direcionadas só para proprietários de automóveis, como a vacinação em drive-through. O coronavírus demandará ações em diversas áreas, como saúde, habitação, emprego e renda, gestão metropolitana e também mobilidade urbana. É tempo de esforços, de inovar e de encontrar novos possíveis.

A pandemia nos mostra que descentralizar o emprego e centralizar as habitações é necessário, ofertar serviços nas periferias é preciso, repensar a lógica de funcionamento e financiamento dos transportes, assim como democratizar a gestão da mobilidade são questões estruturais e urgentes. A maioria de nós foi conduzida, coercitivamente, ao modelo de cidade compacta que os especialistas tanto defendem em que os deslocamentos são curtos e ativos. Neste cenário, o homeoffice se mostrou uma alternativa para reduzir a pressão no sistema, mas ainda é um privilégio de alguns setores da economia e de algumas pessoas com acesso à internet. De todo modo, é preciso estar atentos aos sinais desses novos tempos.

Esperamos que esse momento difícil seja breve e que possamos superá-lo com os maiores aprendizados e as menores dores e perdas possíveis. No amanhã, quando todos voltaremos a ocupar a cidade, que a superação da crise da pandemia nos permita dar os primeiros passos rumo à superação da crise da mobilidade.

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¹ Guilherme Braga de Oliveira Alves é internacionalista e mestre em Políticas Públicas em Direitos Humanos (UFRJ), doutorando em Geografia (UERJ) e pesquisador associado da Casa Fluminense.

² Vitor Dias Mihessen é economista (UFRJ), mestre em economia (UFF) e coordenador de informação da Casa Fluminense.