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Produção de informação para a Segurança Pública: a lógica do resguardo

By 28/09/2011dezembro 12th, 2017Notícias

Como é produzida a informação nas instituições de Segurança Pública no Rio de Janeiro? O projeto “Desenvolvimento e análise de banco de dados com os registros relativos aos atendimentos realizados pelas Guardas Municipais de São Gonçalo e de Rio Bonito”, realizado pelos pesquisadores do InEAC, mostra a partir de dois exemplos locais que as Guardas Municipais geram informação na lógica do resguardo, isto é, usam o registro de ocorrências para se proteger de problemas administrativos e judiciais.

A pesquisa, coordenada pela antropóloga Ana Paula Miranda, foi iniciada em 2009 no âmbito do projeto INCT – Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (InEAC), com o objetivo de investigar o processo de classificação das ocorrências atendidas pelos agentes das Guardas Municipais de Rio Bonito e São Gonçalo, para posteriormente sistematizar essas informações em um banco de dados. Tal proposta faz parte da meta do InEAC de desenvolver um painel de indicadores para o monitoramento de políticas públicas municipais de segurança, que articule diversas fontes de informação institucionais e comunitárias.

Para falar sobre o projeto ao Observatório das Metrópoles, participaram da entrevista a professora Ana Paula Miranda e sua equipe de pesquisadores: a cientista social, especialista em Justiça Criminal e Segurança Pública pela UFF, mestranda em Antropologia e bolsista pelo CNPq, Joelma de Souza de Azevedo; o cientista social, especialista em Segurança Pública, Cultura e Cidadania, Marcos Vinicius Moura, bolsista de Treinamento e Capacitação Técnica pela FAPERJ; a graduanda em Ciências Sociais da UFF e bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq, Talita Miriam do Amaral Rocha; e o graduando de Ciências Sociais da UFF e bolsista PIBINOVA pela UFF, Vinicius Cruz Pinto. “Essa entrevista é coletiva porque faz parte da nossa atividade de pesquisa, para que os alunos se socializem, aprendam a falar sobre as pesquisas que estão realizando etc. Pesquisa, extensão e ensino são transversais a todas as atividades do InEAC”, esclarece a professora.

Segundo Marcos Vinicius Moura, os pesquisadores procuraram as Guardas Municipais de São Gonçalo e Rio Bonito acreditando que havia uma organização mínima dos dados, sendo que durante a realização do trabalho de campo foram identificadas duas principais formas de registro: os livros de registro, presentes nas duas cidades; e o talão de registro de ocorrência (TRO), presente apenas em São Gonçalo.  “Porém, verificamos rapidamente que não havia uma preocupação com a produção de dados sobre a ação diária das duas Guardas Municipais. Quer dizer, não havia uma organização do modo que a gente pensava”, afirma.

Para chegar nesse primeiro resultado, a equipe utilizou a metodologia qualitativa por meio de entrevistas em profundidade com as autoridades (os comandantes e secretários) e guardas municipais dos dois municípios estudados, a realização de grupos focais  e a análise dos livros de registro. “Os livros de registro são preenchidos diariamente com informações administrativas, que se misturam com registros das ocorrências, sendo que as primeiras estão mais presentes nos livros dos chefes de plantão, enquanto as ocorrências atendidas aparecem mais nos livros preenchidos pelos supervisores e pela ronda escolar. Em Rio Bonito é importante ressaltar que a escrita nos livros fica restrita ao supervisor de plantão, o guarda relata a ocorrência atendida ao supervisor e este por sua vez registra os fatos que considera importantes no livro”, explica Marcos Vinicius.

Já o TRO é um instrumento em que os guardas, ao realizarem um atendimento, devem registrar algumas características do fato, sendo um delas a tipificação do atendimento de acordo com 47 códigos que estão no verso do talão. Ele é semelhante ao talão utilizado pela Polícia Militar e seu uso é individual e cada guarda possui seu bloco com diversos talões.

A lógica do resguardo

A fim de sistematizar as informações, os pesquisadores realizaram a digitação dos Talões de Registro de Ocorrência da Guarda Municipal de São Gonçalo, referentes ao ano de 2010. No entanto, encontram apenas 117 registros. “A ideia do banco de dados pressupõe que você tenha um volume de informações para encontrar padrões de comportamento, de fenômenos etc.; porém, a lógica do registro nas Guardas é oposta. Eles só colocam aquilo que é excepcional, aquilo que deu errado, aquilo que é um problema. Em 2010, por exemplo, a Guarda de São Gonçalo apresentou registro de 117 ocorrências; quer dizer, é possível acreditar que durante um ano a cidade teve só esse número de ocorrências atendidas pela Guarda? Claro que não. Isso expressa uma seleção, cujos critérios não são claros”, argumenta a professora Ana Paula.

O trabalho de campo nas ruas e nas sedes das Guardas, mais a sistematização das informações, possibilitaram o entendimento de parte do fluxo da informação na instituição e o seu uso. O que se notou é que em relação ao livro de registro as informações chegam até o comando e são utilizadas apenas para aplicação de medidas punitivas aos guardas ou para elogiá-los em eventuais cerimônias de condecoração, não sendo utilizadas no campo da segurança pública.

“Quando perguntamos nos grupos focais para que servem os registros, os guardas responderam que o registro das ocorrências tanto no livro quanto no TRO servem para resguardá-los de possíveis  questionamentos administrativos, ou até mesmo judiciais, que podem ser feitos a eles. Sendo assim, podemos dizer que existe uma lógica do resguardo que rege o registro das informações na Guarda Municipal de São Gonçalo”, explica Joelma de Azevedo e completa: “Ao escutar os relatos percebemos que os guardas sofrem muitas punições administrativas, por exemplo, corte de salários, troca de postos de trabalho etc”.

É preciso ter bom senso

Quanto ao uso do TRO, a principal função dos registros neste instrumento também é vista, pelos guardas, como uma forma de se resguardar. De acordo com a pesquisa, para um dos guardas que trabalha no Centro de São Gonçalo, o ato de registrar não deve ser a primeira medida a ser tomada frente alguma irregularidade, mas sim a conversa, pois é necessário ter o “bom senso”.

“Por conta da punição, os guardas dizem que tudo tem que ser na base da conversa, tem que ter o bom senso, alguns anotam em um caderninho pessoal grande parte dos casos atendidos. Se o infrator não se desculpar, aí ele pensa em fazer o registro mesmo. Ou seja, há toda uma lógica fora do aporte legal na questão, uma lógica do segredo, da informação não utilizada para a identificação de padrões”, afirma Vinicius Cruz.

Por outro lado, a equipe escutou relato de punições relacionadas à questão política. “Um guarda municipal notificou o irmão de uma importante autoridade municipal, que estacionou o carro numa rotatória próxima ao Hospital de São Gonçalo. O procedimento, apesar de correto segundo a legislação, causou um grande tumulto, sendo que o guarda é quem foi punido. E o guarda que tinha passado em um concurso da PM, por ter uma punição administrativa, não pôde assumir o cargo”, conta Joelma.

Registro de ocorrências on-line

Um desdobramento do projeto de pesquisa foi a construção do site “Informações sobre Conflitos no Espaço Urbano – CEU” para as Guardas Municipais de São Gonçalo e Rio Bonito para o registro de ocorrências on-line e a sua publicização. “Ao verificarmos que as guardas não possuíam um local para organizar as informações e tampouco procedimentos para geri-las, tivemos a ideia de criar esse espaço, onde tanto os guardas como a população podem relatar os conflitos ocorridos no município, que ainda está em desenvolvimento. Pensamos uma maneira de contribuir nesse processo”, conta Marcos Vinicius.

Acesse o site no endereço: http://www.uff.br/ceu-ineac

Em seguida, a equipe do InEAC desenvolveu um Curso de Extensão para apresentar os procedimentos de uso do site e debater com os guardas municipais a importância dos sistemas de registro para o planejamento estratégico. “No curso, fizemos o treinamento para o uso do site e avançamos na discussão sobre o uso de dados no campo da segurança pública. E o que ficou claro é que para muitos deles não havia a compreensão de que os dados por eles produzidos poderiam contribuir para o planejamento do seu trabalho. O segundo momento da pesquisa será retornar a campo e acompanhar como, depois de levantada a questão do uso dos registros como fonte de informação, tem sido as práticas adotadas. Inicialmente, vimos que os guardas de Rio Bonito têm feito uso do site, iremos ao município para acompanhar como vem sendo realizado o uso desta ferramenta, neste momento estamos trabalhando na construção das categorias que eles apontaram como relevantes para tipificar as ocorrências atendidas, esperamos com isso avançar com os guardas no trabalho proposto”, relata Marcos.

Leia a entrevista
 com a professora Ana Paula Miranda: “As instituições de Segurança Pública no Brasil funcionam sob a lógica do segredo”

 

Última modificação em 28-09-2011