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Diversos autores*

A exemplo de tantas outras cidades ao redor do mundo, o Rio de Janeiro vem, desde meados do século passado, desenvolvendo esforços em prol do que se vem chamando de “revitalização” de sua área central, em narrativa que usualmente invisibiliza usos e vivências não integradas à lógica da cidade neoliberal. Em parte, este movimento é expressão de uma inflexão profunda nos debates acerca da conservação do patrimônio histórico e cultural e da influência de novas perspectivas urbanísticas, que privilegiam o adensamento habitacional, a mistura de usos e o aproveitamento máximo dos equipamentos e infraestruturas coletivas. Mas, como indicam diversos estudos críticos, nos últimos anos os projetos de “revitalização” das áreas centrais vêm sendo mobilizados a partir de uma perspectiva estritamente mercadológica no âmbito do planejamento urbano contemporâneo e da produção social do espaço.

Um marco dessa perspectiva é o Projeto Porto Maravilha, operação urbana consorciada implementada no contexto da preparação da cidade para os megaeventos e dedicada a criar, na zona portuária carioca, novos usos e construções voltados para residências de classe média, entretenimento cultural e turismo internacional. Ao longo de mais de dez anos de implementação, o projeto não foi capaz de promover o adensamento populacional do Centro do Rio de Janeiro e fortalecê-lo como espaço majoritariamente residencial, em especial da classe média carioca. Pelo contrário, sua característica principal foi a subordinação aos interesses privados e do mercado, características da governança empreendedorista neoliberal (Santos Jr et al, 2020).

Centro do Rio de Janeiro. Foto: Lucas Dias, pesquisador do Observatório das Metrópoles.

O projeto falhou também ao não promover o reconhecimento de favelas, cortiços e ocupações como espaços residenciais que merecem políticas de melhoramento, dando ênfase à construção de imóveis residenciais voltados à classe média e incentivando empreendimentos comerciais¹. Análise realizada em 2020 mostra que, na primeira década do programa, licenciados na região portuária 77 empreendimentos (o número inclui reformas de antigos empreendimentos), tais como restaurantes, bares, hotéis, shopping center, escritórios e imóveis residenciais, um número bastante baixo para quem desejava transformar uma região daquele porte (Santos Jr et al, 2020).

A pandemia do coronavírus contribuiu para o insucesso do projeto com o abandono da região por parte dos escritórios e iniciativas comerciais, ao passo que a ascensão do trabalho remoto impactou no esvaziamento de edifícios corporativos. O repentino crescimento das taxas de vacância imobiliária da área central, somadas à já antiga percepção da importância de trazer novos moradores para a região, instituíram o cenário propício para a aprovação, em 2021, do Projeto Reviver Centro que, seguindo a mesma lógica do Porto Maravilha, pretendia abranger outra parte da região central.

Reviver Centro e a sua versão “turbinada”

Instituído pela Lei Complementar n. 229/2021, o Reviver Centro é o principal projeto da prefeitura para a região central do Rio de Janeiro no contexto da recuperação da pandemia. Visando à requalificação do tecido urbano da região, o maior objetivo do programa é incentivar o uso habitacional do centro da cidade, fomentando a construção de unidades e a reconversão de edifícios para ampliar a oferta habitacional para populações de diferentes faixas de renda. Para isso, ele introduz uma série de incentivos para agentes do setor imobiliário que decidam investir na região, bem como novos instrumentos urbanísticos que podem ser utilizados para facilitar investimentos².

Proposto logo no primeiro ano da nova gestão do prefeito Eduardo Paes (também responsável pela implementação do Porto Maravilha), no momento em que se discutia a revisão do Plano Diretor da Cidade, o programa foi aprovado à toque de caixa e sem contar com um processo maduro de participação popular. A justificativa foi um suposto “estado de emergência” pelo qual passava a região central, que foi profundamente afetada pela pandemia, e que demandava uma resposta rápida por parte do Poder Público. O risco de “perder o Centro” para a violência e abandono, diante do fechamento de diversos estabelecimentos comerciais, foi amplamente manifestado por representantes da prefeitura e do setor imobiliário.

Passados menos de dois anos de implementação do programa, e com seus objetivos anunciados longe de serem alcançados pelo baixo interesse do mercado, em fevereiro de 2023 a prefeitura encaminhou à Câmara Municipal do Rio de Janeiro o Projeto de Lei Complementar n. 109/2023, que visa alterar o Programa Reviver Centro. O novo projeto de lei traz uma série de mudanças nas disposições da lei original do programa, no sentido de ampliar os incentivos e concessões aos agentes do setor imobiliário que busquem investir na requalificação da área, permitindo assim uma transformação mais rápida e perceptível, como colocou o prefeito Eduardo Paes:

A gente quer acelerar a transformação da área. Mas o mercado acenou que precisa de mais incentivos para investir no Centro e não só priorizar outras áreas da cidade – prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes. Fonte: Jornal O Globo.

O que vem sendo chamado de Reviver Centro “2.0” ou “turbinado” intensifica o modelo de política adotado pela prefeitura para a Região Central. Em síntese, as principais mudanças propostas pelo novo projeto de lei são:

  • Introdução de novos usos para edifícios objetos de reconversão, agora sendo permitidos, para além do uso comercial e residencial, a presença de hospitais e escolas nas edificações;
  • Ampliação dos bairros receptores de operação interligada³. No projeto original, as operações interligadas apenas eram permitidas nos bairros de Copacabana, Ipanema e Tijuca (AP 2), além de áreas da AP 3. O projeto de lei amplia os bairros da Zona Sul que podem receber a operação, acrescentando Botafogo, Lagoa e Glória, além de incluir a Barra da Tijuca e a Taquara (AP 4).
  • Aumento de gabarito nos bairros passíveis de operação interligada. Enquanto que o projeto original limita o gabarito de entre 6 a 8 pavimentos nos bairros mencionados, o PLC flexibiliza essa limitação, permitindo a ampliação do gabarito de 8 a até 12 pavimentos em determinadas áreas.
  • Criação de uma área de gabarito livre. Uma das novidades do PLC 109 é a criação de uma região de gabarito livre no Centro, que se estende nos trechos da Av. Rio Branco e adjacências. Ou seja, nessa área não haverá limite de altura determinado para os edifícios.
  • Isenção de contrapartida financeira para determinados licenciamentos objeto de operação interligada. O novo projeto de lei isenta da cobrança de contrapartida financeira os empreendimentos que adquiriram o potencial construtivo⁴ nos setores Praça XV, Castelo e Cinelândia nos 5 primeiros anos de vigência da lei. Após isso, a cobrança será feita de forma gradativa. Além desta isenção específica, o projeto de lei também estipula a isenção de qualquer contrapartida financeira que possa ser determinada por outra lei complementar, como por exemplo a Outorga Onerosa do Direito de Construir que vem sendo discutida na revisão do Plano Diretor da cidade.
  • Alteração dos padrões de aumento da área total edificável (ATE) em caso de destinação de unidades habitacionais para locação social. O projeto inicial previa o aumento de 60% da ATE projetada, caso o proprietário destinasse 20% das unidades para locação social. O novo PL autoriza o acréscimo de até 150% da ATE projetada nas regiões da Praça XV, Castelo e Cinelândia, caso o proprietário destine 20% das unidades para locação social. Tal mudança, no entanto, não é tão significativa quanto pode parecer, na medida em que o benefício de acréscimo também é dado, mas em uma escala um pouco menor (100% da ATE projetada), a todos os investidores interessados em aumentar sua área construída nas regiões mencionadas.

Há ainda uma outra proposta legislativa que merece especial atenção. Em conjunto com o projeto Reviver Centro “turbinado”, foi apresentado o PL n. 1732/2023, que determina a isenção do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos (ITBI) para os primeiros adquirentes de unidades em empreendimentos situados nos setores da Praça XV, Castelo e Cinelândia. A isenção se insere na onda de incentivos para agentes do setor imobiliário que venham a investir no Centro e revela um interesse adicional por parte do Poder Público na requalificação dos setores mencionados.

Região de gabarito livre no Centro (Anexo IV do PLC 109/2023).

Considerações sobre o Reviver Centro “turbinado”

As alterações propostas ao Reviver Centro pelo PLC 109/2023 não representam uma inflexão significativa na tônica geral do projeto inicial, mas anunciam o aprofundamento e a expansão dos aspectos flexibilizadores do projeto, que vinham sendo criticados desde o estágio inicial de sua elaboração, ainda em 2021. Sob a justificativa de impulsionar a requalificação da região central carioca, a Prefeitura aposta na expansão de concessões e benefícios aos agentes do setor imobiliário, tidos, na perspectiva do Poder Executivo, como alavanca essencial ao processo de transformação da área — e, portanto, como atores a serem privilegiados nas discussões e interlocuções, de forma a pautar essas modificações em favor de seus interesses. Portanto, não é exagero apontar que o protagonismo da produção do espaço proposta pelo Reviver Centro é do mercado.

Uma das principais reticências de especialistas no debate acerca da implementação do Reviver Centro tem sido a homogeneidade dos licenciamentos e lançamentos anunciados no âmbito do projeto — a tendência verificada até o momento é a predileção, por parte de incorporadoras, por empreendimentos do tipo studio (apartamentos de até 30m2), que, não atendendo às necessidades residenciais de famílias ou pessoas de baixa renda, por exemplo, constituem produtos aprazíveis para investidores imobiliários. Disso decorre o risco do direcionamento de parte significativa das futuras unidades residenciais lançadas com o auxílio do programa aos chamados aluguéis de temporada, figurando nos portfólios de locação de plataformas como a Airbnb. Ademais, tal tendência mantém a invisibilidade da ocupação do Centro pelas pessoas mais vulneráveis, que constituem parte significativa dos seus atuais residentes e que clamam por soluções de moradia digna. A manutenção de tal padrão prenuncia a manutenção do padrão excludente de produção habitacional e o desvirtuamento do que se anunciou como o maior objetivo do Reviver Centro, qual seja, o aumento da população residente da área central do Rio de Janeiro. A questão que parece se impor é que os residentes desejados para o centro da cidade não são as pessoas vulnerabilizadas, mas nos cabe refletir sobre os significados e o cabimento de tal questão.

Centro do Rio de Janeiro. Foto: Bruno Frazão, pesquisador do Observatório das Metrópoles.

Importa notar a postura do setor imobiliário em relação a este tipo de crítica. Em evento promovido pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU-RJ) no dia 16 de março de 2023, Marcos Saceanu, presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário do Rio de Janeiro (ADEMI-RJ), discutiu a preferência do setor por empreendimentos de perfil studio no Centro. Segundo ele, tal inclinação se deveria ao fato de que, tendo em vista as taxas de retorno atualmente previstas para investimentos na região, o studio seria a tipologia mais sustentável em termos técnico-financeiros. Assim, os benefícios concedidos pela lei original do Reviver Centro não seriam capazes, por si só, de viabilizar o surgimento de outros perfis residenciais, como o multifamiliar de corte popular. Daí a importância, nesta perspectiva, das novas disposições previstas no pelo PLC 109/2023, uma vez que elas criariam condições propícias de investimento e retorno.

Em síntese, a retórica do setor imobiliário acerca dos ajustes ao Reviver Centro se baseia na defesa da tese de que as concessões financeiras e urbanísticas atualmente em vigor (muitas das quais instituídas em função da própria atuação do setor quando da aprovação da lei original) seriam insuficientes para promover o aumento da população residente da região. Desta forma, defende-se a expansão e o aprofundamento da flexibilização em curso como caminho incontornável para a plena “revitalização” da área central. Mas, se por um lado o setor admite que a priorização dos empreendimentos de studio representa uma limitação ao projeto, não há garantias de que, uma vez aprovadas as disposições do PLC 109/2023, a predileção de incorporadoras por esta tipologia diminua ou deixe de ser prioritária.

Além disso, a isenção total de cobrança de contrapartida para determinados empreendimentos no centro traz preocupações, já que a medida reduz significativamente o potencial de arrecadação do poder público. Segundo o programa, os recursos provenientes da Operação Interligada devem ser destinados ao fundo municipal de desenvolvimento urbano, realização de obras de melhoria, promoção de habitação de interesse social e recuperação do patrimônio cultural. Sendo assim, com o impacto da isenção de contrapartida sobre a arrecadação pública, serão prejudicadas outras políticas importantes para a região, com destaque para programas de habitação de interesse social que teriam um efeito importante de promover novas moradias para as classes populares e também garantir a permanência e o acesso à moradia digna com melhores condições habitacionais para os que historicamente habitam o centro, reconhecendo os benefícios da centralidade como facilitador da reprodução social dos mais pobres.

Em função disso, analisamos que o novo projeto de lei pode ser interpretado como um atendimento às demandas do mercado imobiliário. Fica nítido que o Reviver Centro “turbinado” é um instrumento de intensificação dos problemas e contradições existentes na “Lei original” e assevera o padrão excludente de cidade, incentivado pela atual gestão do poder executivo municipal.


* Texto escrito por Felipe Litsek, Breno Serodio, Vicente Brêtas, Taísa Sanches, Bruna Ribeiro, Tarcyla Fidalgo, Orlando Santos Junior e Utanaan Reis, pesquisadores do Núcleo Rio de Janeiro do Observatório das Metrópoles.

¹ O Plano de Habitação de Interesse Social do Porto Maravilha (PHIS-Porto), elaborado em 2015, mesmo expressando lacunas e soluções controversas, apresentava como propostas:  a produção de pelo menos 10 mil unidades habitacionais no centro; reforma, ampliação e recu peração de aproximadamente 2.500 residências de famílias de baixa renda, dentre outras. Cabe destacar que o PHIS-Porto não foi executado.

² Aqui destaca-se a importância central que ganha o instrumento da operação interligada e os estímulos para a gestão compartilhada de espaços públicos, inclusive valendo-se de parcerias público-privadas, tendência já manifestada no Projeto Porto Maravilha.

³ Previsto no atual Plano Diretor (LC 111/2021), Art 37, inciso III, alínea m; Art. 97; Art. 98; Art. 145; Art 152 e Art. 154, as Operações Interligadas podem ser resumidas em uma parceria entre poder público municipal e o setor privado, consistindo na alteração de parâmetros urbanísticos a partir de contrapartidas que “interligam” uma determinada área de implementação da política urbana com outras áreas da cidade. No caso do Reviver Centro, a construção de nova edificação ou reconversão de edifícios no centro dá ao proprietário o direito de operação interligada em determinados bairros.

⁴ O potencial construtivo é a quantidade de metros quadrados edificáveis de um terreno. De forma simplificada, a transferência do potencial construtivo é a permissão dada por meio de uma declaração (e posteriormente, uma certidão) que autoriza que o proprietário construa em um terreno distinto próprio (ou de terceiros) acima do autorizado pelo coeficiente de aproveitamento básico da região.