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A Rede INCT Observatório das Metrópoles e a Central de Movimentos Populares (CMP) divulgam o resultado final do Projeto Prata Preta, com um levantamento inédito dos cortiços localizados na zona portuária do Rio de Janeiro. O mapa aponta que são 54 cortiços situados na área portuária, distribuídos nos bairros Santo Cristo, Gamboa e Saúde, envolvendo no mínimo 712 quartos, onde habitam cerca de 1.120 pessoas. A pesquisa faz parte das ações em defesa do direito à moradia no contexto da Operação Urbana Porto Maravilha. E tem como objetivo dar visibilidade à situação econômica, social, cultural, jurídica e urbanística dos moradores dos cortiços da área central do Rio; e também identificar a demanda por regularização fundiária e habitação de interesse social.

Fonte: Pesquisa Prata Preta – Observatório das Metrópoles, 2016.

O Projeto Prata Preta é resultado de uma parceria entre o INCT Observatório das Metrópoles, grupo de pesquisa sob a coordenação do Profº Orlando Alves dos Santos Jr., e a Central de Movimentos Populares (CMP), que trabalharam juntos tanto na definição dos objetivos, da metodologia e implementação do levantamento. Os pesquisadores de campo foram compostos por pessoas de ambos os grupos, incluindo pesquisadores e mestrandos do IPPUR-UFRJ e lideranças do movimento popular. A pesquisa contou com o apoio da Ford Foundation.

PRATA PRETA. O nome do projeto é uma homenagem a Horácio José da Silva, mais conhecido como Prata Preta. Capoeirista e estivador brasileiro que liderou as barricadas nos bairros Saúde e Gamboa durante a Revolta da Vacina (1904). Prata Preta liderou mais de 2 mil pessoas nas barricadas montadas na Praça da Harmonia.

DIREITO À MORADIA NO PORTO DO RIO

Desde 2009, está em curso o projeto de renovação da área portuária, implementado por meio da Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha, gerida pela Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro – CDURP. A Operação Urbana envolve obras e serviços nos 5 milhões de metros quadrados da Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) da Região do Porto do Rio, no valor de R$ 8 bilhões de reais, implementados por meio uma parceria público privada – PPP, vencida pelo Consórcio Porto Novo.

Segundo Orlando Alves dos Santos Jr., a análise das intervenções previstas no âmbito da Operação Urbana revela a ausência de investimentos em habitação de interesse social, visando a permanência dos atuais moradores e a ampliação de moradias voltadas para as classes populares. “Vimos poucos recursos públicos sendo investidos em habitação, apesar do aumento populacional e do adensamento demográfico estarem previstos para a região, que, segundo cálculos da Prefeitura, passaria dos atuais 32 mil para 100 mil habitantes até 2020, vivendo nos bairros de Santo Cristo, Gamboa, Saúde e partes do Centro da Cidade”, aponta o professor.

A ausência de políticas e investimentos em habitação de interesse social fez com que diversas organizações populares pressionassem, sem sucesso, a Prefeitura Municipal e a CDURP a elaborarem um plano de habitação de interesse social para área portuária. A partir de normativa enviada pelo Ministério das Cidades, a Prefeitura do Rio elaborou um Plano de Habitação de Interesse Social da Área Portuária.

Segundo Orlando Jr., o diagnóstico realizado para subsidiar a elaboração do referido plano não mencionava nada sobre a existência de cortiços na área portuária, apesar de ser de conhecimento geral a existência desta forma de moradia na área central. Além disso, constatou-se que não existiam informações oficiais nos órgãos públicos sobre cortiços, apesar dos indícios de ser expressiva e disseminada esta forma de moradia na área central. “A invisibilidade dos cortiços nos diagnósticos oficiais também fazia com que não fossem discutidas propostas de políticas públicas voltadas para os cortiços e os seus moradores, já que sua existência não era reconhecida”, explica e completa:

Assim, este quadro colocava como desafio realizar um levantamento de campo, rua por rua, de forma a identificar os cortiços e o perfil dos seus moradores, possibilitando confirmar, ou não, a sua presença e expressividade na área central, bem como, caso fosse confirmada sua importância como forma de moradia, discutidas propostas de políticas públicas voltadas para esta realidade”.

METODOLOGIA DE PESQUISA

Inicialmente, o levantamento foi realizado nos bairros do Santo Cristo, Gamboa, Saúde e parte do Centro, incluídos na área da Operação Urbana do Porto Maravilha. Em uma segunda etapa, serão realizados levantamentos nas demais localidades da área central, envolvendo o centro comercial Saara, Carioca, Praça Tiradentes, Cinelândia, Cruz Vermelha, Lapa e a Cidade Nova.

O conceito de cortiço adotado neste levantamento foi qualquer imóvel – alugado, próprio ou ocupado – coabitado por mais de uma família. Tipicamente são habitações de quartos alugados, com banheiros compartilhados, alguns com cozinhas também coletivas, outros sem espaço específico para isso, mas sendo permitido cozinhar no próprio quarto. Os cortiços também são denominados de habitações ou casas de cômodos, ou ainda quartos de aluguel.

O MAPA DOS CORTIÇOS NO PORTO MARAVILHA

A pesquisa conseguiu identificar 54 cortiços situados na área portuária da operação urbana, distribuídos nos bairros Santo Cristo, Gamboa e Saúde, e também em ruas do Centro, envolvendo, conforme estimativas da pesquisa, no mínimo 712 quartos, onde habitam, cerca de 1.120 pessoas.

Do universo total de cortiços identificados, conseguiu-se entrevistar 25 administradores ou proprietários dos imóveis, que concederam informações sobre o funcionamento dos estabelecimentos. Nos demais casos, quando foi possível, buscou-se informações com vizinhos, comerciantes locais ou moradores.

Além disso, foram entrevistados 105 moradores(as) vivendo nos cortiços identificados na área portuária, o que pode ser considerada uma amostra bastante significativa do universo total dos moradores nestas condições.

A maioria dos imóveis identificados pela pesquisa não faz qualquer anúncio de aluguel de quartos. Dos 54 cortiços identificados, constatou-se o anúncio por meio de placas e letreiros em 15 casos. E dos 25 administradores ou proprietários entrevistados, apenas dois admitiram fazer anúncios em jornais ou sites da internet.

Segundo os entrevistados, a procura por cômodos é grande e constante, não sendo necessário investir em anúncios e propaganda. Mas provavelmente a inexistência de anúncios tem relação com o fato dos cortiços não serem reconhecidos e legalizados pela Prefeitura, o que torna seu funcionamento informal, reforçando sua invisibilidade e vulnerabilidade.

AS CONDIÇÕES DE MORADIA DOS CORTIÇOS

Segundo os moradores informantes, existem 712 quartos nos 54 cortiços identificados, sendo que em dois casos não se conseguiu obter esta informação, o que indica que o total de quartos é ainda um pouco superior a este dado. Levando-se em conta o universo de 52 cortiços nos quais foi possível obter esta informação, constata-se que na maioria dos casos (56%) trata-se de habitações pequenas compostas de um a dez cômodos (29 casos), mas existe também um número significativo (17 casos, correspondendo a 33%) de estabelecimentos médios compostos de 11 a 25 cômodos. Os grandes cortiços, com mais de 25 cômodos, são minoritários (apenas seis casos, correspondendo a 11%), mas incluem um cortiço com 60 e outro com 70 quartos (Gráfico 2).

Além disso, é preciso levar em consideração o número de pessoas que compartilham cada cômodo. Neste caso, levando-se em consideração as informações dos 25 administradores e proprietários, complementadas por informações recolhidas junto aos moradores, pode-se chegar a um quadro razoavelmente preciso, no qual se evidencia que são poucos os cortiços com cômodos compartilhados por mais de duas pessoas.

De fato, constatou-se que em 22 cortiços (42%) vive apenas uma pessoa por cômodo, enquanto que em outros 23 cortiços (44%) vivem até duas pessoas por cômodo. São sete cortiços (14%) onde os cômodos são compartilhados por mais de duas pessoas, sendo em cinco dos casos compartilhado por três pessoas, um compartilhado por cinco pessoas, e em outro o mesmo cômodo é compartilhado por até 12 pessoas. Neste último caso, trata-se de um cortiço com um único quarto de mais de 12 m².

Levando-se em consideração o número de cortiços onde todos os quartos possuem janelas, uma exigência da legislação, o resultado é muito pequeno, alcançando apenas nove estabelecimentos (o que representa 20% do universo considerado). Em outros 13 cortiços (29%), admite-se que a maior parte dos cômodos tem janelas. Em suma, percebe-se que na maioria dos cortiços as condições dos cômodos é bastante precária, sendo que em 21 cortiços (47%) a minoria dos cômodos tem janelas e em outros dois deles (4%) nenhum cômodo possui janelas (Gráfico 4).

Praticamente todos os cortiços tinham banheiros coletivos, com exceção de dois imóveis que tinham banheiros nos cômodos. Também foi muito comum encontrar cortiços com cômodos de banheiros individuais e banheiros coletivos, o que incidia sobre a variação do valor cobrado pelo seu aluguel.

A partir da informação sobre o número total de banheiros em cada cortiço, fornecida por 22 dos administradores e proprietários entrevistados, pode-se traçar uma relação entre o número de moradores dos cortiços e os banheiros disponíveis. Deste universo, nove cortiços tinham entre 1 a 5 moradores por banheiro; seis cortiços tinham entre seis a 10 moradores por banheiro; e sete cortiços tinham entre 11 e 17 moradores por banheiro, constituindo-se, pelo menos aparentemente, nos casos mais graves de acesso à boas condições de higiene.

De acordo com o levantamento de campo, registrou-se o depoimento de 14 moradores, de três cortiços diferentes, que declararam morar em habitações com uma média de mais de 20 pessoas por banheiro, o que pode sugerir que o acesso a boas condições de higiene pode ser ainda mais dramático.

Mas, para além da quantidade de banheiros, os problemas também se referem as condições infraestruturais dos banheiros disponíveis. Constatou-se no levantamento de campo cortiços com banheiros em péssimas condições, a grande maioria sem água quente, e em alguns casos, sem água encanada.

CONTRATOS DE ALUGUEL E INFORMALIDADE

A invisibilidade dos cortiços e o seu funcionamento informal, sem reconhecimento da legislação municipal, certamente alimentam a situação de precariedade verificada em grande parte dos imóveis. Mas os moradores dos cortiços ainda sofrem com mais dois problemas: a inexistência de contratos que deem o mínimo de segurança a sua permanência nos cômodos e o preço do aluguel, que é relativamente alto tendo em vista as condições de moradia oferecidas.

Dos 25 administradores ou proprietários que deram informações sobre estes temas, a grande maioria, 20 deles, não estabelece nenhuma forma de contrato com os moradores. A minoria, os outros cinco, disse assinar algum tipo de contrato com seus inquilinos, que podia variar entre 12 e 30 meses. A ausência de contrato dificulta a comprovação de endereço – o que é importante no dia a dia, dado que o acesso à água e à luz muitas vezes é viabilizado por meio de ligações improvisadas, mais conhecidas como “gato”. Alguns moradores relataram ter problemas para abrir contas no banco, obter serviços de cartório, e até para inscrever-se em programas sociais, como o Bolsa Família.

Com base na informação dos proprietários ou administradores, pode-se identificar o valor mensal cobrado pelo aluguel dos cômodos, em 23 dos cortiços identificados, que varia segundo a qualidade dos quartos (como explicado anteriormente, os cômodos variam de tamanho e de qualidade, com alguns deles podendo possuir inclusive banheiros individuais): nove cortiços cobravam o aluguel dos cômodos entre R$ 150,00 a R$ 300,00; dez cortiços ofereciam cômodos entre R$ 300,00 a R$ 500,00; e outros nove ofereciam cômodos entre R$ 500,00 e R$ 800,00 (o total supera o universo de 23 cortiços porque em alguns casos os cortiços ofereciam quartos nas diferentes faixas).

O PERFIL DOS MORADORES DOS CORTIÇOS

Quem são os moradores dos cortiços? Como vivem nestes espaços? Tal como no caso das condições de moradia, é corrente uma percepção social que associa o morador à marginalização, que vincula estas pessoas aos estratos mais pobres da sociedade. Com poderá ser observado, a pesquisa revela um perfil social heterogêneo, de grupos sociais diversificados, que demandam o acesso ao centro da cidade.

A amostra deste levantamento está constituída por 105 moradores, o que representa cerca de 9,4% da população total estimada como moradora de cortiços na área portuária. Dos 105 moradores entrevistados, 77 eram homens e 28 mulheres, o que talvez expresse o fato dos homens serem maioria entre os que alugam os cômodos, até porque, como foi dito anteriormente, muitos cortiços alugam quartos apenas para homens. Dos 77 homens entrevistados, 51 eram pais, mas apenas quatro (cerca de 10,5% da amostra) moravam com seus filhos. No caso das 28 mulheres, 23 eram mães e a maior parte, totalizando 13 mulheres (72,2% da amostra) viviam nos cômodos com seus filhos.

A situação de paternidade e maternidade se reflete na faixa etária da amostra, constituída relativamente por menos jovens do que adultos. Um pouco mais da metade (54%) da amostra de moradores entrevistados tinha entre 30 e 59 anos de idade. A outra parte era constituída por moradores na faixa de 16 a 29 anos de idade (27%) e na faixa de mais de 60 anos (19%).

Apesar da maior parte dos 105 entrevistados ser brasileiro, foi possível incorporar na amostra dez pessoas com nacionalidade de outros países latino-americanos (4 peruanos, 2 argentinos, 2 uruguaios, 1 chileno e 1 venezuelano) e quatro de países africanos (3 congoleses e 1 senegalês). Mas é preciso registrar a dificuldade encontrada para entrevistar moradores de outras nacionalidades, provavelmente por sentirem maior insegurança seja em relação a sua permanência nos cortiços seja por estarem em situação irregular no país, neste caso encontrando na própria invisibilidade do cortiço uma forma de proteção.

Entre 91 brasileiros, a maior parte da amostra era de fora da cidade do Rio de Janeiro. Tirando os 30% que se declararam oriundos da própria cidade, percebe-se o peso dos estados do Nordeste, do qual vieram 47% dos moradores. Outros 20% se declaram naturais de outros estados do Sudeste e apenas 1% de estados do Sul do país.

Considerações finais

O levantamento realizado em parceria pelo Observatório das Metrópoles e pela Central de Movimentos Populares revela que os cortiços são uma realidade, se constituindo em  alternativa habitacional para diversos grupos sociais na área portuária, devendo ser visibilizados e reconhecidos pelos poder público municipal, por meio da regulamentação dos cortiços, tal como ocorreu em São Paulo, onde legislação específica regula o funcionamento do aluguel de cômodos.

Pelo levantamento de campo foi possível identificar 54 cortiços na área portuária, e estimar a população residentes nestes imóveis, de 1120 pessoas, morando em 712 cômodos, distribuídos nos bairros Santo Cristo, Gamboa e Saúde, e também em ruas do Centro, dentro dos limites da Operação Urbana do Porto Maravilha. Buscou-se desconstruir a percepção corrente, que estigmatiza estes espaços como precários e marginais, mostrando que os cortiços são marcados por uma grande heterogeneidade de condições de moradia e de grupos sociais, que são unificado pela sua demanda de viver na área central.

Tendo em vista a invisibilidade dos cortiços no diagnóstico habitacional da área portuária e a ausência de propostas no Plano de Habitação de Interesse Social da Área Portuária, também torna-se necessário rever este plano, de forma que este tipo de moradia seja reconhecido, e que sejam incorporadas propostas que tornem os cortiços uma alternativa habitacional digna na região Portuária.

Faça o download do Relatório Final do Projeto Prata Preta.