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O que talvez seja mais importante do ponto de vista imediato do conflito entre judeus e palestinos, e do próprio sistema mundial, é que Israel – ao contrário dos palestinos – junto com sua visão sagrada de si mesmo, dispõe de armas atômicas, e de acesso quase ilimitado a recursos financeiros e militares externos.

O artigo “A visão sagrada de Israel” foi publicado em janeiro de 2009 pelo cientista político José Luiz Fiori. O texto foi republicado agora pela Carta Maior por manter-se atual e contribuir para o entendimento do conflito entre Israel e Palestina.
Fiori é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e autor do livro “O Poder Global” (Editora Boitempo). Ele pesquisa e ensina há mais de 20 anos no campo das Relações Internacionais, e em particular, na área de Economia Política Internacional, com ênfase no estudo das relações entre a geopolítica e a economia política do “sistema inter-estatal capitalista”.
Até 2008, publicou 9 livros e organizou 5 coletâneas. Ganhou o Premio Jabuti de Economia, Administração, Negócios e Direito, na Bienal do Livro de São Paulo, em 1998, com o livro “Poder e Dinheiro. Uma economia Política da Globalização”, organizado com a professora M.C.Tavares; e recebeu Menção Honrosa, na Bienal do Livro de 2002, com o livro “Polarização Mundial e Crescimento”, organizado com o professor C. Medeiros. Desde 1990, publicou cerca de 230 artigos em jornais como Valor Econômico, Correio Braziliense, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Jornal do Comercio, e em revistas como Carta Capital, Exame, Praga, Margem Esquerda, Carta Maior, SinPermisso e La Onda.
A VISÃO SAGRADA DE ISRAEL
JOSÉ LUÍS FIORI
Se o Hamas quer acabar com Israel, Israel tem que acabar com o Hamas antes”.
Efraim, 23 anos, estudante de uma escola religiosa de Jerusalém, FSP 24/01/2009
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Durante vinte um dias de bombardeio contínuo, Israel lançou 2500 bombas sobre a Faixa de Gaza – um território de 380 km2 e 1.500 milhão de habitantes – deixando 1300 mortos e  5500 feridos, do lado palestino, e 15 mortos, do lado militar israelita. A infraestrutura do território foi destruída completamente, junto com milhares de casas e centenas de construções civis. E é provável que Israel tenha  utilizado bombas de “fósforo branco” – proibidas pela legislação internacional  com conseqüências imprevisíveis , no longo prazo,  sobre a população civil, em particular a população infantil.
Ban Ki-moon, secretário-geral da ONU, se declarou “horrorizado”, depois de visitar o território bombardeado, e considerou “escandalosos e inaceitáveis” os ataques israelitas contra escolas e refúgios mantidos em Gaza, pelas Nações Unidas.  Richard Falk, relator especial da ONU sobre a situação dos Direitos Humanos em Gaza, também declarou que, “depois de 18 meses de bloqueio ilegal de alimentos, remédios e combustível,  Israel cometeu crimes de guerra, e contra a humanidade, na sua última ofensiva contra os territórios palestinos. Crimes ainda mais graves porque 70% da população de Gaza tem menos de 18 anos”.
Dentro de Israel, entretanto – com raras exceções – a população apoiou  a operação militar do governo israelita. Mais do que isto, as pesquisas de opinião constataram que o apoio da população foi aumentando, na medida em que avançavam os bombardeios, até chegar a índices  de 90%. E no final, na hora do cessar-fogo, metade desta população era favorável à continuação da ofensiva, até a  reocupação de Gaza e a destruição do Hamas. (FSP, 24/01/09).
Seja como for, duas coisas chamam a atenção – de forma especial – nesta ultima guerra:  a inclemência de Israel, e sua indiferença com relação às leis e às críticas da comunidade internacional. Duas posições tradicionais da política externa israelita, que têm se radicalizado cada vez mais, e são quase sempre explicadas pela “escalada aos extremos” do próprio conflito.
Mas existe um aspecto desta história  que  quase não se menciona, ou então é  colocado num segundo plano, como se as “visões sagradas” do mundo e da história  fossem uma característica exclusiva dos países  islâmicos.  Desde sua criação, em 1948, Israel se mantém sem uma constituição escrita, mas possui um sistema político com partidos competitivos e eleições periódicas, tem um sistema de governo parlamentarista segundo o modelo britânico, e mantém um poder judiciário autônomo. Mas ao mesmo tempo, paradoxalmente, Israel é um estado religioso, e uma grande parte da  sua população e dos seus governantes têm uma visão teológica do seu passado, e do seu lugar dentro da história da humanidade.
Israel não tem uma religião oficial, mas é o único estado judeu do mundo, e os judeus se consideram um só povo, e uma só religião que nasce da revelação divina direta, e não depende de uma decisão, ou de uma conversão individual: “se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis uma propriedade peculiar entre todos os povos. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa”  Êxodo, 19, 5-6.
Além disto, o judaísmo estabelece normas e regras específicas e inquestionáveis que definem a vida quotidiana e comunitária do seu povo, que  deve se manter fiel e seguir de forma incondicional as palavras do seu Deus, mantendo-se puros, isolados e distantes com relação aos demais povos e religiões: “não seguireis os estatutos  das nações que eu expulso de diante de vós… Eu Javé, vosso Deus, vos separei desses povos. Fareis distinção entre o animal puro e o impuro… não vos torneis vós mesmos imundos como animais, aves e tudo o que rasteja sobre a terra”  (Levítico, 20, 23-25).
Para os judeus, Israel  é a continuação direta da história deste  “povo  escolhido”, e por isto,  a sua verdadeira legislação ou constituição são os próprios ensinamentos bíblicos. O Torá conta a história do povo judeu e é a lei divina,  por isto não pode haver lei ou norma humana que seja superior ao que está dito e determinado nos textos bíblico, onde também estão definidos os princípios que devem reger as relações de Israel com  seus vizinhos e/ou com seus adversários.  Em Israel não existe casamento civil, só  a cerimônia rabínica, e os soldados israelenses prestam juramento com a Bíblia sobre o peito  e com a arma na mão: “Javé ferirá todos os povos que combateram contra Jerusalém: ele fará apodrecer sua carne, enquanto estão ainda de pé, os seus olhos apodrecerão em suas órbitas, e a sua língua apodrecerá em sua boca.”  (Zacarias, 14, 12-15).
As ideias religiosas dos povos não são responsáveis nem explicam necessariamente as instituições de um país e as decisões dos seus governantes. Mas neste caso, pelo menos, parece existir um fosso quase intransponível entre os princípios, instituições e objetivos da filosofia política democrática das cidades gregas, e os preceitos da filosofia religiosa monoteísta que nasceu nos desertos da Ásia Menor.
Mas o que talvez seja mais importante do ponto de vista imediato do conflito entre judeus e palestinos, e do próprio sistema mundial, é que Israel – ao contrário dos palestinos – junto com sua visão sagrada de si mesmo, dispõe de armas atômicas, e de acesso quase ilimitado a recursos financeiros e militares externos. Com estas ideias e condições econômicas e militares, Israel seria considerado – normalmente – um estado perigoso e desestabilizador do sistema internacional,  pela régua  liberal-democrática dos países anglo-saxônicos. Mas isto não acontece porque no mundo dos mortais, de fato,  Israel foi uma criação e segue sendo um protetorado anglo-saxônico, que opera desde 1948, como  instrumento ativo de defesa dos interesses estratégicos anglo-americanos, no Oriente Médio. Enquanto os anglo-americanos operam como a âncora passiva  do “autismo internacional” e da  “inclemência sagrada” de Israel.
Janeiro de 2009