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Dulce Bentes¹
Huda Andrade S. de Lima²
Marcello Uchoa Wanderley³
Firmino de Castro Neto⁴

No marco das lutas pela democratização do acesso à terra urbanizada no Brasil, sobretudo a partir dos anos de 1980, a sociedade natalense foi capaz de pactuar importantes instrumentos que possibilitaram, em algum nível, o reconhecimento e a inclusão dos assentamentos de origem informal à cidade. Em contextos marcados por contradições, pressões e resistências, os Planos Diretores de 1994 e de 2007, Leis Complementares nº 07 e nº 082, respectivamente, definiram critérios e estabeleceram parâmetros, na perspectiva de afirmação dos territórios das Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS)⁵ e da sua inclusão na política de habitação de interesse social.

Contudo, a minuta do novo Plano Diretor de Natal enviada à Câmara de Vereadores pelo Executivo municipal, no dia 29 de setembro de 2021, rompe de forma estrutural com princípios da função social da propriedade e gestão democrática, face às propostas de desconstrução e, em alguns casos, de eliminação dos mecanismos de proteção socioambiental das AEIS, instituídos a partir de 1994.

Veja também:

Cabe destacar inicialmente que se verificam permanências e até acréscimos nas categorias de identificação das AEIS na cidade. O agravante das propostas se coloca principalmente através da flexibilização dos parâmetros de ocupação do solo, da subtração de frações de AEIS e da eliminação dos mecanismos de participação social nos processos de gestão das AEIS.

Do ponto de vista dos critérios de identificação, visando a demarcação das AEIS no Plano Diretor, foram mantidas aquelas instituídas na Lei Complementar nº 082/2007, objeto de revisão, sendo acrescida a categoria que trata dos territórios ocupados por comunidades tradicionais litorâneas.

Ressalta-se que desde o Plano Diretor de Natal de 1994, verificam-se avanços na formulação dessas categorias. Isso tem contribuído para o processo de identificação dos diversos tipos de informalidade e de assentamentos de interesse social que exigem reconhecimento e tratamento no âmbito da política de habitação e interesse social do município.

Em 1994, foram definidas categorias que possibilitaram identificar áreas ocupadas por favelas, vilas, loteamentos irregulares, bem como áreas urbanas vazias e subutilizadas. Os estudos que estavam sendo desenvolvidos pelo município, visando a elaboração do Plano de Ação para a Política de Habitação de Interesse Social (NATAL, 1994), contribuíram para a identificação e mapeamento de aproximadamente 70 favelas, 2.217 vilas e 118 loteamentos irregulares, dentre os quais identificou aproximadamente 65.122 habitantes em assentamentos de origem informal, distribuídos em 14.458 domicílios⁶, que vieram a ser confirmadas no Plano Diretor de Natal de 1994. Embora tenham sido reconhecidas, o processo de regulamentação foi remetido para fase posterior. Naquela década, apenas a AEIS Mãe Luzia foi regulamentada, fruto de iniciativa popular e com expressiva participação social, que resultou na aprovação da Lei nº 4.663, de 31 de julho de 1995.

Em 2007, a Lei Complementar nº 082 (NATAL, 2007) confirmou as categorias de AEIS existentes, sendo instituídas mais duas modalidades:

Art. 22 (…) II – Terrenos ocupados por assentamentos com famílias de renda predominante de até 3 (três) salários-mínimos, que se encontram em área de implantação ou de influência de empreendimentos de impacto econômico e submetidos a processos de valorização imobiliária incompatíveis com as condições socioeconômicas e culturais da população residente (NATAL, 2007).

Essa categoria permitiu incluir assentamentos e bairros que não possuíam características de favelas, vilas, loteamentos irregulares e vazios urbanos, mas abrigavam população com renda predominante de até três (03) salários mínimos. São exemplos, o reconhecimento dos bairros das Rocas e de Santos Reis como AEIS, que estão localizados na orla marítima, próximos a Ponte Newton Navarro, Zona Leste de Natal. As pressões exercidas, tanto pela nova infraestrutura viária, quanto pelas atividades turísticas predominantes na região, evidenciaram a necessidade de se adotar medidas protetivas para a habitação de interesse social ali existente. Os estudos desenvolvidos no âmbito da Política de Habitação de Interesse Social (PHIS) para Natal (NATAL, 2005) fundamentaram a definição dessa categoria.

A outra modalidade de AEIS inserida decorreu de questões apresentadas por moradores da Comunidade do Gramorezinho, localizada no bairro Lagoa Azul, Zona Norte de Natal, limites com o município de Extremoz. Trata-se de um importante polo agroecológico de Natal e da sua Região Metropolitana. Dado que o município de Natal é considerado área urbana em sua totalidade no Plano Diretor, havia dificuldades para os moradores acessarem projetos, créditos rurais e outros, tendo em vista a sua realização em “área urbana”. A relação entre moradia e trabalho fortaleceu a inserção dessa comunidade como AEIS.

Nesse contexto, foi criada a categoria que contempla os espaços de produção de alimentos, com objetivos de abastecimento e segurança alimentar:

Art.22 (…) III – Terrenos com área mínima de 1.000 m² (mil metros quadrados) destinados à produção de alimentos de primeira necessidade voltada à população com renda familiar predominante de até 3 (três) salários-mínimos, com objetivo de garantir o abastecimento destinado ao suprimento da cesta básica e ou da complementação nutricional diária (NATAL, 2007).

Além dessas categorias, os estudos da PHIS Natal (2005) contribuíram ainda para inserção, no Plano Diretor de 2007, de um indicador de habitação de interesse social no município, dado principalmente pela renda familiar. Com base no mapa social de Natal definiu-se a Mancha de Interesse Social, MIS, que sinaliza as regiões da cidade com famílias de renda predominante até 3 salários mínimos, para além das AEIS demarcadas. O objetivo é que essas regiões sejam incluídas nas políticas de habitação de interesse social do município e consideradas em suas especificidades em quaisquer projetos de intervenção urbana.

A partir de 2017, quando iniciou o processo de revisão do Plano Diretor (Lei Complementar nº 082/2007), foram evidenciadas outras áreas com características de interesse social, a exemplo dos territórios pesqueiros levados a debate por representações de comunidades tradicionais litorâneas articuladas principalmente através da Rede MangueMar.

O Seminário Orla de Natal, realizado pelo Fórum Direito à Cidade em 2018, gerou um espaço de discussão e aprofundamento sobre as especificidades das AEIS, notadamente aquelas situadas nas orlas marítima e fluvial de Natal que estão submetidas a forte pressão imobiliária. Nesse contexto, as comunidades pesqueiras formularam a seguinte proposta de categoria de AEIS, que foi inserida na minuta do novo Plano Diretor de Natal, sob análise:

Territórios ocupados por comunidades tradicionais litorâneas, que são responsáveis pela pesca artesanal reconhecida e apoiada pelas suas características particulares de moradia e trabalho, praticadas em terra e mar, utilizando técnicas simples, com baixo custo de produção e baixo impacto ambiental, assegurando subsistência econômica das famílias envolvidas e a conservação dos bens naturais costeiro-marinhos.

Observa-se assim que do ponto de vista das categorias de AEIS, foram mantidas as indicações do Plano Diretor de 2007, acrescentando os territórios ocupados por comunidades tradicionais pesqueiras.

Avalia-se que nessa trajetória de quase três décadas, houve avanços importantes quanto ao reconhecimento e instituição da AEIS em Natal. Porém, as fragilidades que se apresentam historicamente no campo da gestão, impõem graves limites à consecução dos objetivos de regulamentação, urbanização e regularização fundiária. Desde 1994, apenas cinco AEIS foram regulamentadas: i) AEIS Mãe Luiza, Lei nº 4663/ 1995; ii) AEIS Passo da Pátria, Lei Complementar nº 44/2002; iii) AEIS Jardim Progresso, Lei nº 5.555/2004; iv) AEIS Nova Descoberta, Lei Promulgada nº 0246/2006; e, v) AEIS África, Lei nº 5.681/2005.

Longe de enfrentar esse problema, que foi discutido no grupo de trabalho, as propostas da minuta do Plano Diretor de Natal se apresentam de forma fragmentada e destituídas de fundamentos sobre suas especificidades e dinâmicas de transformação da AEIS. Ao contrário das experiências de revisão dos Planos Diretores anteriores, o município não gerou estudos de avaliação para discussão e aprofundamento sobre o tema no processo participativo, como por exemplo a atualização do mapa socioeconômico de Natal.

Tratando-se sim da afirmação de um patamar mais elevado sobre o direito à moradia, qualquer flexibilização sobre o instrumento deve estar adequadamente fundamentada. Conforme recomendação do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas – reconhecido por Comitê DESC da ONU –, que, portanto, versa sobre direitos sociais como o direito à moradia, qualquer medida que signifique deliberado retrocesso deverá exigir a mais cuidadosa apreciação e necessitaria de ser inteiramente justificada.

Observando o conjunto das propostas da Minuta de Lei de Revisão do Plano Diretor Municipal de Natal aprovadas na Conferência Final, destaca-se a sua fragilidade em relação ao marco regulatório do direito à moradia e às análises, que quando não se mostram superficiais, estão totalmente ausentes de fundamentos.

Nesse sentido, destaca-se a limitação das bases cartográficas das AEIS e a ausência do mapa social que demonstrem basicamente parâmetros socioeconômicos, da infraestrutura urbana básica, do padrão de habitabilidade das moradias. Nesse vazio de dados o Artigo 28 – parágrafos 1º, 2º e 3º – da Minuta de Lei do Plano Diretor de Natal propõe a exclusão de frações de AEIS, com efeitos sobre todo o universo de moradias de interesse social que a estruturam:

  • 1° Ficam excluídas a antiga área de tancagem da Petrobras e do píer próximo à Rampa como Áreas de Interesse Social (…).

  • 2º Os limites georreferenciados das AEIS 1⁷ devem ser atualizados quando da regulamentação específica, a partir dos diagnósticos desenvolvidos.

  • 3º. Ficam excluídos os terrenos localizados nas AEIS 1 com testada voltada para os seguintes logradouros: Av. Xavier da Silveira (AEIS Nova Descoberta); Rua Prof. José Melquíades (AEIS Brasília Teimosa); Rua Pinto Martins (AEIS Alto do Juruá); Av. Bernardo Vieira, Rua Jaguarari, Av. Antônio Basílio e Rua dos Tororós (AEIS Coqueiros); Av. Bernardo Vieira e Av. Antônio Basílio (AEIS Coréia do Nilo).

A Minuta de Lei direciona para exclusão de terrenos de AEIS demarcadas em áreas pressionadas pela dinâmica imobiliária, sobretudo dentre aquelas situadas em eixos de orla marítima e em eixos viários estruturantes. A subtração de frações de AEIS sem dados e argumentações técnicas agrava o fato de forma generalizada, numa perspectiva de agravamento da situação de vulnerabilidades socioambiental das famílias, o que na prática representa uma ação de despejo anunciado.

Soma-se a isso, a indisponibilidade de dados técnicos originais, como por exemplo da base cartográfica da Minuta de Lei (arquivos digitais shapefiles) para integrantes dos Grupos Temáticos do suposto processo participativo. Ao solicitar à Coordenação Técnica da revisão do Plano, houve o comunicado de que os arquivos originais de cartografia seriam disponibilizados ao final do processo, tendo a possibilidade de realizar consulta apenas na Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo, esta responsável pela revisão.

O acesso as bases cartográficas georreferenciadas originais da revisão do Plano com indicadores do mapa social possibilitaria a leitura do território no contexto da vulnerabilidade social, a partir da sobreposição de cartas sobre os riscos ambientais de localidades específicas e da própria dinâmica de mercantilização do solo.

Outra proposta sem fundamentação técnica e diagnóstico das AEIS diz respeito a alteração de parâmetros urbanísticos que o Plano Diretor atual, objeto de revisão, remete para regulamentação específica, definindo parâmetros básicos. O Artigo 25, inciso I, da legislação em vigor (NATAL, 2007), enfatiza a restrição dentre as AEIS não regulamentadas de “novos desmembramentos ou remembramentos, exceto para os usos institucionais e áreas verde”.

Entretanto, o Artigo 31 da Minuta de Lei propõe que as AEIS não regulamentadas possam estabelecer novos desmembramentos e remembramentos em lotes inferiores a 300m². Além disso, altera o gabarito máximo permitido para as AEIS de 7,5m (Artigo 25, inciso II, NATAL, 2007) para 15m dentre os vazios urbanos, com áreas superiores a 400m². Como também, aumenta o coeficiente de aproveitamento para 2,0 – na legislação em vigor é de 1,2 – desde que possua infraestrutura compatível e aprovada pelo Conselho Municipal de Habitação de Interesse Social (CONHABIN).

Sem base de dados que a fundamente, a proposta desconsidera que a alteração de parâmetros deve ser orientada pelo processo de regulamentação urbanística, como processo que possibilita alterações dos padrões básicos definidos na lei vigente, desde que tenha o conhecimento prévio das especificidades locais, como os aspectos sociais, ambientais, culturais, econômicos. Arbitrar padrões, na perspectiva de potencializar a construção no lote, sem considerar que a grande parte das AEIS estão em áreas de fragilidade ambiental, e que algumas estão em Zonas de Proteção Ambiental (ZPA) ou no seu entorno, contradiz os princípios da função social da propriedade e da sustentabilidade ambiental definidas inclusive nas diretrizes da própria Minuta.

O mecanismo da restrição ao remembramento cumpre a função de proteção social e ambiental no contexto das AEIS.  Portanto, a alteração pontual, arbitrada sem referência a condicionantes sociais e ambientais (no mínimo) afeta as AEIS, regulamentadas ou não.

Por representar claro objetivo de impulsionar a mercantilização do solo, com efeitos sobre a expulsão de população socialmente vulnerável, o artigo contraria o marco legal do direito à moradia quanto “ao planejar o uso e a ocupação do solo, no que concerne ao bem comum e à defesa do meio ambiente”, conforme a Lei Orgânica do município de Natal, do Artigo 5, incisos II e III. Ademais, desconsidera a legislação ambiental que estabelece a necessidade de medidas restritivas de uso e ocupação do solo no entorno de ZPA, Unidades de Conservação e similares.

Orla de Natal (RN). Foto: Canindé Soares.

Do ponto de vista ambiental, a proposta não considera as recomendações para Zona de Amortecimento do entorno de Unidades de Conservação, o qual estão sujeitas normas e restrições específicas das atividades humanas para reduzir os impactos negatividades sobre as unidades (Art. 2º, Inc. XVIII, BRASIL, 2000).

Refutando, assim, a Nova Agenda Urbana (NAU) que declara sobre o comprometimento de promover políticas de habitação adequada para todos como uma componente do direito a um nível de vida adequado, com prevenção de desocupações forçadas arbitrárias e com foco nas necessidades das pessoas em situações vulneráveis, grupos com baixos rendimentos. Tais ações do planejamento e das políticas devem ser viabilizadas com a participação e o envolvimento de comunidades e demais atores relevantes, que apoiem a produção social do habitat.

Além disso, a atual proposta de minuta flexibiliza de maneira grave o caráter participativo e democrático do instrumento das AEIS a partir do momento que, nos Artigos 30 e 36, define que a regulamentação específica das AEIS deverá ocorrer por meio de Decreto do Executivo Municipal, ouvido parecer do Concidade/Natal, órgão colegiado integrante do Sistema de Planejamento e Gestão Urbana do Município. Ou seja, garante-se liberdade para o Executivo Municipal atuar sobre as características de prescrição urbanística, direito à moradia e mercantilização do solo urbano a partir do instrumento da AEIS sem a interferência participativa dos moradores dessas áreas ou mesmo do legislativo e, principalmente, sem a obrigação de seguir as deliberações do Concidade/Natal, que passaria a atuar, em relação às AEIS, restrito à sua natureza consultiva.

Dessa forma, desconfigura-se a natureza jurídica das AEIS, pois a afirmação dos territórios no âmbito legal e de planejamento garantida pelo instrumento pressupõe não apenas a participação social dos moradores dessas áreas, bem como de outras formas legítimas de participação, a exemplo do próprio Concidade/Natal. Assim, se por um lado somente a voz dos moradores das AEIS no processo de regulamentação específica significa a direta possibilidade de intervenção dos legítimos interessados em seus próprios territórios, por outro, a participação social por meio dos conselhos do Sistema de Planejamento e Gestão Urbana do Município também são responsáveis por conferir segurança jurídica na formulação, execução e acompanhamento de políticas urbanas, como as AEIS.

Ocorre que, no sentido participativo, essa proposta de redação na atual minuta não só desconfigura as AEIS, mas deflagra uma série de ilegalidades de acordo com o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), bem como entra em contradição com as próprias diretrizes e objetivos do Plano Diretor no que diz respeito à Nova Agenda Urbana.

Verifica-se primeiro que, de acordo com o Estatuto da Cidade, a Política Urbana, em especial aquela de cunho social, sem mecanismos de participação não é compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, considerando que a gestão democrática é definida como diretriz geral da Política Urbana, por meio de instrumentos como órgãos colegiados, além de debates, audiências e consultas públicas, que garantem a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos legitimamente interessados. Desse modo, tratando-se de uma ilegalidade, o fato desse importante instrumento da política urbana seja tolhido de uma de suas características norteadoras e características essenciais.

Enquanto isso, a Nova Agenda Urbana também é desconsiderada diante dessa proposta de flexibilização sobre a participação social na regulamentação das AEIS, mesmo que seja um dos supostos objetivos do Plano Diretor o fomento do que está posto na NAU, na condição de normativa internacional que estabelece referências de como as cidades deveriam se transformar para serem habitáveis, inclusivas, saudáveis, sustentáveis, seguras, organizadas, compactas e resilientes aos fenômenos naturais. O primeiro princípio do documento apresenta uma abordagem dos direitos humanos orientados à vida urbana:

Para concretizar nossa visão, resolvemos adotar uma Nova Agenda Urbana, orientada pelos seguintes princípios interligados:

(a) não deixar ninguém para trás, eliminando a pobreza em todas suas formas e dimensões, incluindo a erradicação da pobreza extrema; assegurando direitos e oportunidades iguais, diversidade socioeconômica e cultural e integração ao espaço urbano; garantindo a participação pública ao proporcionar acesso seguro e igualitário a todos e todas à infraestrutura física e social e aos serviços básicos, bem como à moradia adequada e economicamente acessível;

Entretanto, a redação dos Artigos 30 e 36 da Minuta entregue à Câmara de Vereadores apresenta um panorama exatamente oposto: a população sendo deixada para trás, tendo o seu legítimo direito à participação eliminado quanto aos destinos dos territórios das AEIS.

Outra proposta na perspectiva de eliminação das AEIS presente na Minuta pode ser identificada no Artigo 32, § 2º, em que se prevê a permissão para que, por meio de plebiscito, sejam redefinidos os limites geográficos das AEIS, sendo indicada a exclusão ou inclusão de uma fração do território ou mesmo sua extinção da condição de AEIS.

Ocorre que de acordo com o glossário da própria minuta de lei, no mesmo sentido das definições trabalhadas nos Planos Diretores anteriores, o fator renda familiar predominante deverá, na realidade, se valer para definição dos limites geográficos do território da AEIS como um todo, não de suas frações, pois como posto na sua definição vale-se a renda predominante da área completa, não se excluindo os diferentes perfis socioeconômicos da AEIS.

Sobre o plebiscito, entende-se que se trata de um instrumento legítimo de participação social, porém a minuta prevê que poderá ser realizada tanto por moradores das AEIS, por proprietários de lotes limítrofes às AEIS, pelo Poder Público Municipal ou pela Câmara de Vereadores. Nesse caso, é necessário que se observe inicialmente o rol de entes legitimados para convocação do referido plebiscito. A Lei Orgânica do Município do Natal em seu Artigo 22 define como competência exclusiva da Câmara Municipal, o que torna a proposta tecnicamente inconsistente.

Outra observação relevante sobre essa proposta é o tratamento fragmentado da AEIS, desconsiderando o princípio da predominância do perfil social no universo total do assentamento. Autorizar que “proprietários de lotes limítrofes às AEIS” realizem um plebiscito para decidir sobre a subtração de frações de AEIS, significa conferir poderes aos referidos proprietários para eliminar as AEIS localizadas no seu entorno. Isso certamente não encontra base no marco regulatório do direito à moradia, que o Plano Diretor deve observar.

Já a formulação do Artigo 35, Inciso II, impossibilita a criação de novas AEIS ao longo do tempo e contradiz o previsto no Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) que define a necessidade de reconhecimento e urbanização das AEIS, impedindo a democratização e consolidação do planejamento referente ao uso e ocupação do solo com essa tipologia socioeconômica por um período.

Embora a maior parte das AEIS não tenham sido ainda regulamentadas, conforme referido anteriormente, os parâmetros urbanísticos previstos nos Plano Diretores de Natal de 1994 e 2007, junto às lutas sociais e aos processos de resistência dos moradores da AEIS, demonstram a importância desse instrumento para assegurar em algum nível a permanência dos territórios historicamente constituídos por seus moradores, notadamente aquelas que hoje se encontram nos bairros e regiões mais estruturados da cidade.

Os claros objetivos de flexibilização de parâmetros urbanísticos e de eliminação das AEIS inseridas na minuta do Novo Plano Diretor, como forma de impulsionar a mercantilização da terra e de substituição do perfil social da população residente, sobretudo na orla marítima de Natal, indicam a importância que o instituto da AEIS possui para a proteção social e ambiental de suas populações e para a efetivação de direitos socioambientais.

Considerando que existe um processo de consolidação das medidas protetivas conferidas às AEIS em Natal ao longo de quase três décadas, entende-se que o ato de fragilizá-las e eliminá-las configura violação do direito à moradia em todos os níveis. Certamente que as lutas sociais pela proibição do retrocesso são caminhos necessários para as ações de resistência dos seus moradores, da sociedade em geral e em especial do sistema de defesa de Direitos Humanos.

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¹ Professora do Departamento de Arquitetura (UFRN) e pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Natal.

² Arquiteta e Urbanista, professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário do Rio Grande do Norte (UNI-RN), pesquisadora do Observatório das Metrópoles Núcleo Natal e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/UFRN).

³ Bacharel em Direito (UFRN), mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais (PPEUR/ UFRN).

⁴ Graduando em Ecologia (UFRN) e bolsista do Projeto de Extensão Motyrum Urbano (UFRN).

⁵ Ressalta-se que devido às especificidades do processo de Planejamento Urbano de Natal, foi adotado o termo Áreas Especiais de Interesse Social – AEIS, não havendo, contudo, diferença conceitual em relação as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) definidas no Estatuto da Cidade (2001). Assim, trata-se de um dos principais instrumentos de política fundiária adotado pelos municípios brasileiros voltado para a implantação de programas e projetos habitacionais.

⁶ Dados disponibilizados pela Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social – SEMTAS (BENTES SOBRINHA, et al, 2020).

⁷ O Artigo 32 da Minuta de Lei do Plano Diretor, define a AEIS 01 como “territórios ocupados por população de baixa renda, precários do ponto de vista urbanístico e habitacional, destinados à regularização fundiária, urbanística e ambiental”.

REFERÊNCIAS

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BENTES SOBRINHA, Maria Dulce. MORETTI, Ricardo. DIÓGENES, Maria Caroline. Áreas Especiais de Interesse Social em Natal: direito à moradia em risco. VI ENANNPARQ, Brasília, 2020. Disponível em: https://enanparq2020.s3.amazonaws.com/MT/22280.pdf. Acesso em: 07 de dezembro de 2021.

BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm. Acesso em: 07 de dezembro de 2021.

BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 07 de dezembro de 2021.

DUARTE, Marise Costa de Sousa. Espaços especiais em Natal (moradia e meio ambiente): um necessário diálogo entre direitos e espaços na perspectiva de proteção aso direitos fundamentais na cidade contemporânea. Tese Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. Natal, 2010.

NATAL. Lei Complementar nº 7, de 5 de agosto de 1994.  Dispõe sobre o Plano Diretor de Natal e dá outras providências. Natal, 1994.

NATAL. Lei Complementar nº 82, de 21 de junho de 2007.  Dispõe sobre o Plano Diretor de Natal e dá outras providências. Natal, 2007.

RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. As Metrópoles e o Direito à Cidade na inflexão ultraliberal da ordem urbana brasileira. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: https://www.observatoriodasmetropoles.net.br/wp-content/uploads/2020/01/TD-012-2020_Luiz-Cesar-Ribeiro_Final.pdf. Acesso em: 07 de dezembro de 2021.

Páginas eletrônicas:

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