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Por Jéssica Wludarski¹

Aconteceu em Curitiba, no dia 16 de maio de 2023, o lançamento do Caderno de Proposições e Experiências “Subsídios a uma agenda pela reforma urbana e o direito à cidade/metrópole na Região Metropolitana de Curitiba”. O profícuo debate sobre o material elencado no Caderno foi realizado em forma de Roda de Conversa, com as presenças de Rosa Moura (Pesquisadora do IPEA), Carolina Israel (Professora do Departamento de Geografia – UFPR), Liria Nagamine (Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia – UFPR), Marina Sutile (egressa do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e melhor dissertação no Prêmios ANPUR 2023), Daisy Ribeiro (Advogada da Terra de Direitos), Madianita Nunes da Silva (Professora do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano – UFPR), Luiz Belmiro Teixeira (Professor de Sociologia do Instituto Federal do Paraná e Professor do Programa de Pós-Graduação do Planejamento Urbano) e Deputado Goura (Deputado Estadual do Paraná).

A pesquisadora Rosa Moura iniciou agradecendo a cada integrante do Núcleo Curitiba que participou do Projeto “Reforma Urbana e Direito a Cidade e os Desafios do Desenvolvimento Nacional” e lembrou que o Caderno possui um elenco de proposições e relatos de experiência que são fundamentais para nortear a formação de políticas públicas, incidir sobre Direitos e garantir universalmente o usufruto de benefícios de uma metrópole diversa, igualitária e inclusiva. Rosa destacou que se trata de “o direito à cidade na metrópole”, de uma cidade de distinta natureza, a natureza metropolitana. Uma cidade única, imensa, que se espalha em parte dos territórios de 18 municípios do Estado do Paraná. Portanto, só pode ser bem administrada sob a ação conjunta das 18 prefeituras e dos parlamentos. A autora explica que esta cidade metropolitana se caracteriza pela intensidade dos fluxos de pessoas e mercadorias, e, cada vez mais, o local de moradia se distancia dos locais de trabalho, estudo e lazer. Três indicadores sintetizam a distinta natureza da metrópole, a mobilidade cotidiana imposta pela dissociação da moradia do local da realização das atividades essenciais à vida, a pluri municipalidade de seu território e a necessidade do exercício de funções que deixam de ser municipais, pois tornam-se de interesse comum, pertencendo a mais de um município. Diante desta nova natureza temos uma nova cidadania, a cidadania metropolitana, pontua Rosa. É nesta direção que o Núcleo Curitiba vem atuando, seja na pesquisa, na produção de informações e na prática de formação.

Na sequência Carolina Israel apontou que parte do trabalho do grupo de pesquisadores consistiu em tentar desconstruir o mito de Curitiba como Cidade Modelo, que paira no nosso imaginário e se apoia em alguns espaços seletivos, desfrutados por parte da população e não são acessíveis nem habitáveis por todas as pessoas. A pesquisadora alertou que na esfera do city marketing ronda um grande perigo: o perigo de se achar que é natural e positiva a construção de um novo modelo que se ancora na cidade inteligente. Nesse sentido o problema da complexidade urbana justifica a utilização de tecnologia digitais que capturam, processam e tratam de informações de modo continuo, no entanto a administração pública não tem tecnologia própria para o tecnosolucionismo. A coisa pública é envolvida em uma rede de atores privados e de dispositivos proprietários que atuam na privatização do espaço público, seja ela direta ou indireta, pela captação dos nossos dados. Como exemplo desse processo, Carolina apresentou o projeto Muralha Digital, sistema de cercamento eletrônico da cidade de Curitiba, que envolve câmeras de alta resolução com reconhecimento facial, reconhecimento de placas, entre outros.

O sistema de vigilância eletrônica aplicado em Curitiba possui falibilidade sobretudo para determinados segmentos populacionais como pessoas negras e mulheres, criando, portanto, uma relação de assimetria entre a administração pública e a população. Nesse sistema, a prefeitura possui acesso aos fluxos e aos padrões de comportamento espaciais dentro da digitalização do espaço. Além disso, temos o reconhecimento facial, nas escolas paranaense tendo as bigtechs como plataforma. Com estes exemplos, a pesquisadora ressaltou a importância em compreender que a digitalização do espaço urbano traz novos desafios para o entendimento de justiça social e direito à cidade que passam pelo direito à autodeterminação digital e à justiça de dados. A autora apontou como proposições a necessidade de suspensão de tecnologias de reconhecimento facial (em conformidade às diretrizes da ONU), a abertura de comitê especial multisetorial (permanente) para acompanhamento dos impactos e resultados de políticas públicas que passam pela coleta, processamento e compartilhamento de dados sensíveis e, por fim, a transparência das empresas que integram estas plataformas, de forma que sejam auditáveis e haja controle social.

Liria Nagamine abordou a questão da participação na era digital, entendendo a participação democrática como direito à cidade e como uma garantia constitucional. Segundo a pesquisadora, o Estatuto da Cidade não pode ser uma camisa de força, usado como uma cartilha a ser seguida, sob o risco de perder de vista a participação como direito à cidade e como democracia. A pesquisa realizada pelo Núcleo Curitiba – e que consta no livro REURDC – buscou compreender se o uso da web é uma alternativa que dá voz ou que cala a partição. Os resultados apontam que os aparatos digitais contribuem para a construção do diálogo e como instrumentos de participação, mas quando se trata do uso das TICs (Tecnologias da Informação e da Comunicação) por instituições governamentais, os aparatos digitais se apresentam como uma nova forma de abstração da realidade para o estabelecimento de uma imagem, no caso uma smart city participativa. As entrevistas realizadas durante a pesquisa partiram do pressuposto que os canais via web são subterfúgio de narrativas de participação.

Sob este aspecto, Liria apresentou três pontos que devem ser levados em conta, sejam digitais ou presenciais. O primeiro é a desmistificação de narrativas, de modo a trabalhar o fortalecimento do conhecimento da participação e da formação de grupos que se posicionem de forma efetiva no combate às desigualdades socioespaciais das cidades. Quando aprofundamos as análises das narrativas percebemos que elas provêm das mesmas fontes, que seguem cartilhas conforme sua conveniência. Tendo em vista tais narrativas, é de suma importância considerar as práticas insurgentes na corporificação do direito a cidade. Imaginar que uma população trabalhadora, na escala metropolitana, imersa em um cotidiano de sobrevivência diária pelo trabalho irá simplesmente se organizar e utilizar os canais disponibilizados pelos institutos é uma mera ilusão dos gestores que visam validar um processo [participativo]. A autora destacou que falta ao poder público um entendimento da complexidade da dinâmica espacial contraditória em suas várias escalas e dimensões de modo a compreender que a participação não é um agendamento de reuniões audiências públicas que podem ser simplificadas pelo uso de TICs.

Como segundo apontamento, Liria salientou a importância governamental em considerar seriamente as práticas insurgentes como movimentos que mostram as possibilidades para uma gestão mais aproximada de interpretação da realidade repleta de contradições. O terceiro ponto elencado é que a participação, seja ela digital ou presencial, exige o reestabelecimento dos canais interfederativos de participação. Os conselhos participativos foram alvo de um desmonte institucional que ocorreu nos últimos 4 anos de “desgoverno”. Além disso, na escala metropolitana a pesquisa realizada verificou a não existência dos canais participativos como ferramentas de planejamento urbano-metropolitano, sejam elas presenciais ou virtuais. Liria finalizou enfatizando a necessidade de evoluir na tarefa – que é difícil – de compreensão da dimensão metropolitana que se dá a partir dos lugares e do vivido, do cotidiano desigual, das pessoas com mais baixo acesso a todas as condições de vida inclusive a digital. E alerta para o fato de que a complexidade metropolitana pode ser utilizada para invisibilizar seus problemas pelo uso de diversos estratagemas e subterfúgios, entre eles o digital, por isto a importância dos canais de representação social de resistência e de práticas insurgentes.

Seguindo na Roda de Conversa, Marina Sutile refletiu sobre a questão alimentar na metrópole e as iniciativas para combater a insegurança alimentar. Para a autora o fato de constar esta temática no Caderno de Proposições já é um avanço, pois trata-se de um assunto pouco explorado do ponto de vista do planejamento urbano. A pesquisa desenvolvida por Marina foca a espacialização dos desertos alimentares na metrópole de Curitiba, e aponta que a desertificação alimentar está fortemente associada à dinâmica de conformação das cidades, onde áreas periféricas e subcentralizadas apresentam os desertos alimentares mais graves. No entanto, a pesquisa aponta para resultados contra intuitivos, com a existência do fenômeno localizado em áreas centrais de Curitiba ou outros municípios da metrópole. Como proposições a autora elege o investimento em infraestrutura em larga e pequena escala, em logística e ferrovias, para que a cadeia de alimentos tenha custos menores, assim como investimentos na escala de bairro. Além disso, a implementação de novos equipamentos de segurança alimentar (sacolões, armazéns da família, feiras livres) podem ser ampliadas para além da cidade de Curitiba, adentrando o território metropolitano. E, por fim, outra iniciativa importante é a restrição de propagandas de fast food em áreas específicas para atingir públicos como crianças e adolescentes, para não incentivar o consumo de alimentos não saudáveis.

Madianita Nunes da Silva abordou a temática da habitação e moradia, lembrando que a pesquisa cujos resultados estão sumarizados no Caderno se trata de um trabalho coletivo, que envolve outros pesquisadores, que discute o direito à cidade e o direito à moradia, como um tema metropolitano. Segundo a autora, embora a habitação seja um tema recorrente na discussão de política pública, ao invés de ser enfrentado, há dificuldade de ser combatido. Uma dimensão importante, explorada no Caderno, é a necessidade do reconhecimento da moradia como função pública de interesse comum (FPIC). A moradia traz a dimensão do espaço vivido pelas pessoas e tem uma grande potencialidade de romper com a visão setorial que historicamente vem sendo adotada para o desenho e execução das políticas públicas, reforçando a dimensão da moradia como integradora e articuladora das FPICs. Além disso, a transversalidade dessa dimensão vai possibilitar a construção da política metropolitana, aproximando os diferentes entes responsáveis pela execução das políticas públicas de maneira mais igualitária e cooperada, iluminando, portanto, a construção do debate das FPICs e contribuindo para a construção de uma governança metropolitana.

A autora apontou ainda a necessidade urgente de que a política urbana e habitacional tenha prioridade no atendimento da população mais empobrecida, afinal esta é a população para qual a política pública deve ser desenhada e endereçada. Além disso, que se considere a diversidade dos grupos sociais, uma diversidade que tem raça e tem gênero. Outra questão fundamental é repensar o paradigma do programa habitacional e o acesso à casa própria como única solução, que ao invés de incluir a população à casa própria, tem cada vez mais excluído essa população. Também fundamentais a importância, a urgência e a necessidade de se pensar políticas e programas de urbanização de favelas e periferias; a necessidade de pensar políticas públicas contínuas e de longo prazo, que tenham na sua elaboração e execução o reconhecimento dos espaços de participação popular e a manutenção da autonomia coletiva na construção dessas políticas; e colocar um fim ao ciclo de coerção e cooptação. Por fim, Madianita destacou a necessidade de reconhecer as periferias populares para além das precariedades, pois são espaços de vida da população com redes de solidariedades e reciprocidades muito densas, que são desconsideradas na política habitacional. A autora defendeu a importância de se colocar no centro da discussão políticas públicas que de fato reconheçam e se apropriem da realidade de que a população precisa da cidade para viver e não para acumular capital.

A próxima fala da roda de conversa foi realizada por Daisy Ribeiro, que teve o papel de resgatar as experiências coletivas sintetizada no Caderno. A pesquisadora relatou a necessidade de pensar o passado, o presente e o futuro e dialogar coletivamente sobre isso. As experiências coletivas e suas pluralidades são importantes chaves de interpretação de diversos níveis. Elas evidenciam as contradições sociais como, por exemplo, uma cidade que se coloca como smart city, mas que contém um problema histórico de habitação não enfrentado além do agravamento da fome. Os manifestos coletivos denunciam e inspiram as propostas colocadas. São iniciativas bastante potentes, como por exemplo o Guia Prático de Enfrentamento ao Despejo. Trata-se de uma iniciativa muito importante que mostra o desafio de empobrecimento e de ameaça, mediante o desmonte de políticas públicas, que mesmo em meio à pandemia de Covid-19, ao desemprego e à fome, precisavam lutar por algo tão precário, e, ao mesmo tempo, absolutamente necessário.

Nesse sentido, as campanhas de Despejo Zero, e as jornadas em torno de terra, teto e trabalho tiveram um papel muito importante. Ao mesmo tempo, outras iniciativas que dialogam com a fome, como o Marmitas da Terra, ou mesmo o Curso de Direito a Cidade e Políticas Públicas e o Desenvolvimento Sustentável, foram contribuições importantes para dialogar e construir conjuntamente com as comunidades, e compreender os problemas comuns relacionados a cada localidade. Ainda temos muitos entulhos autoritários, relatou Daisy. Apesar de estarmos em uma nova conjuntura, onde outras possibilidades nos são colocadas, como por exemplo a criação da secretaria das periferias, ainda há muitos desafios. Resgatar estas experiências é olhar para os desafios da gestão municipal que nega as vivências populares. Uma negação que coloca uma maquiagem de tecnologia e tenta encobrir a realidade. Mediante o empobrecimento geral da população, a administração municipal fechou banheiros e restaurantes populares, separou famílias (deixando os filhos longe dos pais) e promoveu remoções. Portanto, resgatar as experiências de luta e resistência é olhar como uma chave que perpassa todas essas questões, que possam auxiliar nesta nova conjuntura e conseguir avanços reais que permitam o direito à cidade.

O pesquisador Luiz Belmiro expôs que a rede do Observatório das Metrópoles se propõe a realizar um trabalho de produção intelectual e acadêmica, mas que também é militante, e que, portanto, seja capaz de propor políticas públicas e atuar em prol do direito à cidade. Enfatizou que trabalhamos com as políticas públicas sociais, e representamos um grupo de pesquisadores que estuda saúde, educação, moradia, a participação das mulheres na pandemia, entre outros. Infelizmente o quadro que encontramos em Curitiba é de uma cidade rica, com recursos, que ao mesmo tempo que se constrói ela produz a exclusão. Ou seja, o processo que a produz é um processo de exclusão e por isso ela é uma cidade excludente, não apenas sob o ponto de vista econômico, mas no sentido de invisibilizar a experiência das pessoas de menor poder aquisitivo, que não fazem parte dos grupos que são retratados nas cidades. Isso acontece com diversos setores marginalizados: as mulheres na periferia, a população negra – basta pensarmos que faz apenas 10 ou 12 anos que temos uma praça para reconhecer a participação desta população na colonização da cidade. Devemos incentivar a construção de memoriais e espaços para valorizar as experiências dessas pessoas, pois à medida que essas pessoas construíram suas vidas, suas vilas, elas também construíram a cidade. Temos que ter uma virada, uma mudança nas políticas públicas, que estão em certas regiões e deem espaços e voz para essas pessoas. Temos trabalhos produzidos que apontam áreas que necessitam de mais recursos e de políticas que são urgentes. Essas áreas estão aguardando por intervenção durante toda a história da cidade, precisamos escrever outro capítulo, onde a gente tenha efetivamente o direito à cidade assegurado a toda a população. Nesse sentido, tanto o livro quanto o Caderno de Proposições e Experiências cumprem este papel.

Crédito: Felipe Bijega

Finalizando a Roda de Conversa o Deputado Goura parabenizou o Observatório da Metrópoles pela riqueza de informações existentes no Caderno de Proposições e Experiências e no debate e aponta o quanto é difícil fazer a crítica a Curitiba. É como se não houvesse favela, população de rua, ou como se não existisse 150 mil pessoas vivendo em vulnerabilidade na cidade. É como se estivéssemos vivendo à sombra de coisas boas que foram feitas, mas também de muitas desigualdades que foram perpetuadas no decorrer das décadas, porque os mecanismos se demonstraram falhos. Mesmo o famoso tripé do IPPUC (transporte coletivo/sistema viário/uso do solo), é aplicado para uma cidade justa e sustentável? O cinturão verde da agricultura periurbana não é uma realidade sustentável. A metrópole de Curitiba possui cerca de 15 mil produtores rurais, mas apenas 10% praticam atividades agroecológicas. Ao mesmo tempo desperdiçamos 2 mil toneladas de resíduos urbanos que vão para o aterro sanitário. Qual o interesse de uma empresa que recebe resíduos? Mais resíduos! E qual é o interesse da coletividade da cidade que recebe resíduos? Menos resíduos! São interesses diferentes que expõem a complexidade metropolitana.

Goura salientou que com recursos próprios a cidade de Curitiba está investindo 200 milhões de reais na compra de frota de ônibus elétricos. O que nós faríamos com 200 milhões para mobilidade? Vamos investir em ônibus elétrico, que é obrigação das empresas? Este tipo de liberalismo funciona muito bem para algumas empresas que se beneficiam do investimento público. Goura destacou também as escolhas desiguais de investimento, como aquele que prioriza recapear ruas já asfaltadas em vez de pensar uma cidade acessível. Não é apenas uma questão recursos, mas de escolhas de ações, de urbanismo tático, de democracia e de como a cidade pode ser realmente transformada. Por isso a importância em ampliar os mandatos comprometidos, que pensam a questão metropolitana e o direito à cidade.

Acesse o Caderno de Proposições e Experiências “Subsídios a uma agenda pela reforma urbana e o direito à cidade/metrópole na Região Metropolitana de Curitiba”.

Crédito: Rafael Bertelli


¹ Arquiteta urbanista, pesquisadora bolsista do Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.